Ao contrário do boom e do frisson causado por suas séries de investimento mais generosos, como Stranger Things e a recém-cancelada Sense8, a Netflix sempre me trouxe maior interesse por suas produções de porte menor, mais contido, e que pouco se assemelhavam a um “trabalho de produtor” como as duas citadas acima, apenas como exemplos. Títulos que tiveram inícios tímidos como Orange is the New Black, Unbreakable Kimmy Schmidt ou Grace and Frankie hoje seguram seu público, nem sempre muito extenso, fielmente e com um senso de liberdade em tela que lhe concedem tons mais agradáveis do as outras produções calculadas da gigante de streaming.
Gypsy, criada pela estreante Lisa Rubin e protagonizada pela veterana Naomi Watts (de 21 Gramas e Cidade dos Sonhos) chega como parte deste meio da Netflix menos concentrado em suas ambições e mais preocupado com a história em definitivo que está sendo narrada em tela. Neste caso, Watts interpreta Jean Holloway, uma terapeuta casada e mãe de família que, sem grandes explicações e movidas pelos próprios impulsos, começa a se envolver com a ex-namorada de um de seus pacientes, a bartender Sidney (Sophie Cookson). À partir disso, Gypsy desenha gradativamente (bem gradativamente) as relações nem sempre compreensivas dos personagens em suas atitudes, mas que atuam como um exercício de reflexão no trabalho de 10 episódios sobre temas como identidade, feminilidade, casamento, sexualidade, questões de gênero e ética profissional.
Talvez por tentar abraçar o mundo com sua abordagem e insistir numa narrativa de caminhar lento (motivo de grande parte das reclamações), Gypsy fique no meio do caminho no desenrolar de algum de seus plots (ou talvez tenham sido reservados para uma improvável segunda temporada), como o diagnóstico de TDAH da filha de Jean ou certos acontecimentos do passado na vida do casal, detalhes apenas pincelados em meio a um roteiro cuja principal preocupação reside no estabelecimento e na crescente rede de mentiras, desconfianças e atitudes contestáveis que rodeia a vida de Jean e dos que estão ao seu redor, de onde nem mesmo escapa seu marido, Michael (o eficiente Billy Crudup).
O que nos fisga em Gypsy, independente de suas fragilidades, é o tom de mistério estabelecido pelo roteiro por vezes novelesco (o que funciona à favor aqui) e o constante clima de suspense que, numa agradável surpresa, nos remete aos suspenses eróticos de James Foley e Adrian Lyne nos anos 80/90, o que ressalta todo o jogo de sedução e magnetismo sexual entre os personagens, reféns de seus próprios desejos, sejam eles carnais ou pela mera necessidade em preencher, de alguma forma, lacunas que existem em seus cotidianos.
E como um trabalho idealizado, em grande parte, por mulheres (Watts é produtora executiva, enquanto que Sam Taylor-Johnson, de Cinquenta Tons de Cinza, dirige os dois primeiros episódios), é natural que Gypsy também fale, e aqui com uma bem-vinda naturalidade, sobre os próprios impulsos femininos, o papel da mulher dentro de uma sociedade que lhes impõem posições, além da própria sexualidade feminina. Gypsy é bastante honesta em sua experimentação sobre as vertentes do sexo feminino.
Nisto, os nomes masculinos acabam sofrendo certas baixas, de fato. Michael, também à mercê de seus desejos impulsos, por vezes parece letárgico em demasia na percepção de que há algo de estranho no comportamento de sua esposa, por mais que a série não deixe de lhe valorizar como um personagem com seus próprios plots. Tom (Karl Gusman), um dos pacientes de Jean e ex-namorado de Sidney, também termina como um mero rosto que está ali para ser manipulado pelas mulheres ao seu redor, e nisso pouco há o que falar sobre o senso de perigo que sua presença e obsessão representavam para Sidney.
Mas se o seriado enfrenta certos problemas nestes núcleos, há de se destacar o trabalho de referências visuais que a série elabora para acompanhar a constância de seus personagens, como a presença forte de espelhos e vidros que duplicam a imagem dos personagens, ressaltando o jogo de identidades duplas, e os elegantes planos-sequências distribuídos em momentos ideais onde a sincronização dos sentimentos com a imersão do público se mostram indispensáveis e essenciais. Há, claro, todo o elegante trabalho de cores da fotografia mergulhada em tons cada vez mais soturnos e que andam lado a lado com a proposta de manipulação visual da série. A chateação fica por conta da canção-tema do grupo Fleetwood Mac, aqui regravada pela própria Steve Nicks, mas em meio a imagens onde a balada pouco condiz e nos dá a impressão de, a cada início de episódio, estarmos começando um novo episódio de alguma novela mexicana. É de uma estranheza incômoda.
De qualquer forma, Gypsy nos intriga e questiona em cima de seu estudo sobre a psiquê humana e suas contradições, o que justifica a tão incômoda ausência de resposta ao chegar de sua season finale, tão cheia de questionamentos até o último frame. Mas o trabalho de Lisa Rubin é mais competente do que parece à princípio, se despe de ambições maiores para apenas contar sua história e nos envolver nesta teia cada vez mais enrolada de relações extraconjugais, segredos do passado e a sexualidade cada vez mais latente em nossa realidade pós-moderna.
Pontos para Gypsy, e que venha uma segunda temporada!
Gypsy – 1ª Temporada — EUA/ Reino Unido, 2017
Showrunner: Lisa Rubin
Direção: Coky Giedroyc, Victoria Mahoney, Alik Sakharov, Sam Taylor-Johnson, Scott Winant
Roteiro: Jonathan Caren, Lisa Rubin, Sean Jablonski, Jessica Mecklenburg, Sneha Koorse
Elenco: Naomi Watts, Billy Crudup, Sophie Cookson, Karl Glusman, Poorna Jagannathan, Brooke Bloom, Lucy Boynton, Melanie Liburd
Duração: 10 episódios de aprox. 50 minutos cada.