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Crítica | Guerra e Paz – Parte II: Natasha Rostova (1966)

por Fernando JG
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Natalya Ilynitchna Rostova, ou só Natasha Rostova, não apenas figura como uma das estrelas do enredo de Guerra e Paz, como também garante um filme só dedicado à ela, e não é difícil de entender o porquê esta é uma personagem tão aclamada pela crítica literária, tendo em vista que ela foi pensada justamente para ter essa grandeza e sensibilidade de espírito que a difere de todos os outros. Com um brilho próprio, ela se opõe à frieza do príncipe Bolkonsky, à parcimônia da prima Sônia, à dureza de sua mãe. Ao mesmo tempo em que ela se destaca, ela se aproxima da afetividade e da gentileza de seu pai, e se encontrará num enlace amoroso, num momento mais tardio da trama, com a figura mais romântica e sentimental de toda a obra: Pierre Bezukhov; encontro este que não poderia ser diferente. 

O filme II da tetralogia é um exemplo, e uma aula, do que se refere àquilo que chamamos de estudo de personagem. Ele é pensado inteiro a partir de um argumento que busca desenvolver, apresentar e aprimorar a condessa Rostova, explorando suas características comportamentais e sentimentais. Sendo assim, apesar de ser bem mais curto do que a primeira parte – 1h40m -, a película não tem pressa em seu curso dramático e se desenrola com a calma necessária para que possamos conhecer a protagonista e o seu entorno. Não é só ela que é estudada, mas tudo aquilo que tem uma conexão com ela entra junto na exposição narrativa. O argumento focaliza as passagens de formação da condessa, de uma infância para a juventude mais adulta. Seu amadurecimento é visível, bem como o aflorar de suas aptidões de grandeza as quais desde a sua entrada irradiante no primeiro filme (Guerra e Paz – parte I:  Andrei Bolkonsky, 1965) pela porta principal já conseguíamos ver intensidade que seria trabalhada a protagonista. 

Se o anterior, e toda a tetralogia, se propõe a ser um épico, trabalhando a partir de uma noção de gênero superior, com belicismo, gravidade e excelência, Guerra e Paz – Natasha Rostova é um instante lírico e apaixonado, que destoa de toda a rigorosidade do enredo em geral.  É um instante lírico porque esta parte atua como um respiro, com doses e mais doses de sentimentalismo, melancolia e emoção. Neste ponto, é possível perceber que, apesar de ser Guerra e Paz tradicionalmente um único filme, ele opera de modo distinto em cada uma de suas partes e já na segunda película a diferença temático-estilística em relação à primeira se mostra evidente. Com uma característica absolutamente lírica, a câmera movimenta-se lentamente, como que conduzida pelo som de uma lira. 

Acompanhamos então o desenvolvimento de Rostova, que, em um baile na corte, apaixona-se pelo príncipe Bolkonsky em uma dança. Como é próprio deste personagem, a sua frieza faz com que este relacionamento machuque demais a condessa, que passa boa parte do enredo sofrendo devido ao espírito indeciso e gelado do nobre. Ela, então, experimenta amores proibidos, aventuras, angústias, tristezas e choros desesperados em razão do seu espírito de urgência em ser amada. Assim como ela ama demais, ela busca alguém que a ame em igual potência. Esta segunda parte ocupa-se, como disse, em um estudo de personagem, o que, invariavelmente, amarra toda a sequência de filmes, pois, além dela, alguns outros protagonistas são explorados, como Pierre Bezukhov. 

Para este estudo, alguns aspectos compositivos se destacam. Como a intenção deste longa-metragem é conhecer a condessa, a direção utiliza exaustivamente o recurso da voice-off, que constrói intensos monólogos interiores, dando a ver tudo o que ela pensa, suas dúvidas, seus medos e seus anseios, conferindo profundidade e complexidade à personagem principal. Particularmente, ver esta narração moderna sendo trabalhada no enredo fílmico me satisfaz, afinal, a única maneira, irrevogavelmente, do filme atingir o nível psicologizante de Guerra e Paz é lançando mão deste procedimento, que é executado com um sucesso incrível. É através deste método que somos colocados dentro da cabeça do personagem. Morango Silvestres (Ingmar Bergman, 1957) é, para mim, o grande exemplo do domínio técnico do recurso narrativo de voice-off no cinema, e que, por sua vez, a película de Sergei Bondarchuk não deixa a desejar se comparada a este grande protótipo que é o filme do Bergman. Nos primeiros instantes, a câmera fica obcecada pela condessa, gravando todas as suas movimentações, de um lado ao outro, através de planos-abertos e planos-sequência que evidenciam a presença de Rostova no ambiente. A cena do baile é um de seus grandes momentos. Sendo o primeiro baile de Natasha, conseguimos ver no rosto dela a vontade de ser convidada para uma dança, desejo realizado por Bolkonsky. A sutileza desta cena é arrebatadora e a câmera dança junto com os atores, com planos que captam toda a ambientação. 

Em algum momento tinha dito que Pierre era o personagem romântico de Guerra e Paz – romântico em dois sentidos: ser amoroso e ser o representante de uma estética literária romântica, em contraposição ao realismo -, no entanto, há uma outra figura romântica no enredo fílmico, que é a própria Natasha. Ela deriva essa característica do seu pai, e oferece uma liricidade a toda a estrutura cinematográfica. Este filme, por conta disso, é menos soberbo e robusto do que o anterior, e todas as suas instâncias narrativas, técnicas, compositivas são visivelmente mais sutis, para justamente casar com a figura romântica de Rostova, que é sensível assim como o enredo. Esta característica temático-estilística do filme que representa a própria protagonista é possível de perceber em uma cena muito específica. Num momento pós jantar na casa de seu primo, Rostova retorna para o palácio. Neste instante, ela está desolada, despedaçada mesmo, e seu interior tem uma fratura amorosa imensa por ter sido abandonada pelo insensível Bolkonsky. Esta é a cena em que todo o ambiente é tomado por sombras e escuridão, exatamente para fazer refletir o estado de alma da condessa, que encontra-se em intensa melancolia pela agonia de uma espera por alguém que jamais voltará para ela. O soturnismo da cena evidencia a sua característica romântica, e por isso ela é tão grandiosa, por conter uma delicadeza muito distinta, ingênua e sentimental, como Pierre Bezukhov. 

A atriz que representa a protagonista, Lyudmila Savelyeva, tem um domínio de atuação que é impressionante. De certo, ela conhece muito bem o seu personagem, e a ele oferece uma postura dramática que caminha, com muita facilidade, do amor à urgência, da calma ao desespero. Se muita gente ficou de boca aberta com a atuação dramática de Anne Hathaway como Fantine, principalmente na sua performance musical que ia, num intervalo de minutos, da calmaria a uma aflição desesperada, imagino como não ficariam ao ver os planos-fechados, ou melhor, cerrados, no rosto de Rostov enquanto ela chora exasperadamente em frente à câmera, com a face molhada e avermelhada. Num extremo, a postura sentimental e urgente de Rostova me lembra o Werther, de Goethe. E é claro: nada disso seria possível sem uma atriz impecável e competente por trás da heroína fictícia. 

As cenas finais se passam num clima de tensão extrema, impulsionadas por uma trilha sonora de suspense, que intenciona alarmar o público. É o momento em que Natasha está desesperada por diversos motivos, e também é o instante que em breve eclodirá novamente a guerra, com a invasão napoleônica à Rússia. Os últimos minutos, portanto, fazem a transição deste longa explicitamente lírico para o filme seguinte, o 1812. A construção de passagem é admirável. Acontecerá aquilo que é contrário à razão humana: o início do conflito bélico. 

Guerra e Paz – Natasha Rostova é uma parte mais do que necessária para o desenvolvimento do enredo como totalidade, e a direção serve-se deste instante para amarrar e desenvolver alguns de seus protagonistas. Como longa-metragem, ele é autônomo e possível de ser assistido separadamente, já que focaliza um desenrolar dramático próprio. Com um caráter de transição inegável, ele abre caminho para o prosseguimento da tetralogia, que finaliza com um plano-longo destacando a marcha solene dos milhares de soldados russos que desfilam em quantidade marciais pela tela, convidando-nos ao longa seguinte: Guerra e Paz – 1812. 

Guerra e Paz, parte II – Natasha Rostova (Voyna i Mir) – URSS, 1966.
Direção: Sergei Bondarchuk
Roteiro: Sergei Bondarchuk, Vasiliy Solovyov (baseado no romance de Liev Tolstói)
Elenco: Lyudmila Savelyeva, Sergei Bondarchuk, Vyacheslav Tikhonov, Oleg Tabakov, Irina Skobtseva, Anastasiya Vertinskaya, Antonina Shuranova, Aleksandr Borisov, Viktor Stanitsyn, Irina Gubanova
Duração: 100 min. 

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