Quando o Luiz me sugeriu que escrevesse sobre o filme de Guerra e Paz, a primeira coisa que pensei foi: será que a complexidade narrativa do romance de Tolstói caberá dentro do cinema? O realismo do século XIX e a densidade das narrativas europeias deste período são verdadeiros monumentos, não só de tamanho, mas sobretudo pelo modo em que esses romances articulam a psicologia distinta de diversos personagens em um único livro. O Vermelho e o Negro, de Stendhal, o pai do realismo, é primoroso neste sentido, mas Anna Keriênina e Guerra e Paz são irretocáveis e fundam a Rússia e a sua literatura moderna. Apesar de ter tido contato com a superprodução na qual Audrey Hepburn faz um papel desajeitado da incrível personagem Natasha Rostova, a grande personagem feminina de Tolstói, o filme de Sergei Bondarchuk tinha passado despercebido por mim. Achei que não seria possível que coubesse na minutagem de um longa-metragem, seja ela qual for, a espessura do enredo do romance, que tem lá suas 1200 páginas mais ou menos, na minha edição. Com seus mais de 400 minutos, um pouco mais de 07 horas de filme, o longa de Bondarchuk expõe uma soberba competência em sua adaptação, e já na cena inicial do salão nobre eu sabia que, além de estar diante da leitura definitiva do trabalho de Tolstói, seria esta uma obra-prima. Esta não será uma crítica que espelhará literatura-cinema, pelo contrário. Embora seja uma adaptação, o que mais interessa em uma crítica cinematográfica é a percepção da construção fílmica no desenrolar da sua montagem, produção e desenvolvimento. Como audiovisual, o longa mostra-se autônomo e competente por si só, apresentando o puro cinema e elevando-se à grandiosidade da obra literária.
O filme mais caro produzido pela União Soviética até então teve um período de 6 anos de preparação, entre a proposta inicial e o último lançamento. A princípio, ele tinha como intenção contrapor-se ao longa de King Vidor no contexto da famosíssima Guerra Fria. Como já é próprio da nação russa dar à cultura mundial o que temos de melhor em matéria de arte cinematográfica e literária, principalmente durante sua Era de Ouro, entre os sécs. XIX e XX, a entrega deste longa não seria diferente. Com uma aula de realismo histórico através de uma câmera que capta as impressões mais profundas de todo o seu entorno – seja ele personagem ou ambiente -, junto da precisão com que conduz a interpretação narrativa da Invasão Napoleônica, contrapondo estilisticamente à densidade descritiva que faz do interior das famílias aristocratas russas, o filme coloca-se em um lugar de cânone.
Ao cinéfilo com olhar viciado em apreciar apenas as magnânimas cenas de guerra, e só à elas creditar o sucesso do filme, sinto em dizer que o melhor do longa não está aí precisamente. De fato, as duas últimas partes em que a guerra se desenrola com seus milhares de figurantes e conflitos marciais ensurdecedores são magníficos, no entanto, a genialidade da direção está em conduzir o seu filme através da figura do narrador, da narração em off e de uma câmera-intrusa que consegue detalhar as mais diversas instâncias dos personagens os quais se propõe a analisar. O aparecimento de Natasha Rostova neste primeiro longa, permeada por uma espécie de magia sonora e visual em torno da sua entrada pela porta principal, acompanhada por um duplo enfoque de zoom, que aproxima, em uma fração de segundos, o seu rosto da câmera, é o grande shot cinematográfico de toda a tetralogia. A complexidade imposta pelo diretor em um único momento, utilizando-se da combinação de diversos aspectos compositivos – som, imagem, aproximação de planos com um duplo-zoom e performance da atriz -, para apresentar a sua personagem mais grandiosa, é arrebatador, causando um fascínio e um enaltecimento instantâneo da figura irradiante da condessa Rostova, sendo esta a fração de segundo mais bem realizada do épico de Sergei Bondarchuk.
Este primeiro tomo, o mais longo entre as partes, se restringe a uma apresentação de três famílias e seus interesses diante do curso da História contemporânea, frente aos conflitos e à posição russa à época: os Bolkonsky, os Rostov e os Bezukhov. Não há um argumento definido, mas acompanhamos alguns momentos essenciais, como o aparecimento da figura do Príncipe Andrei Bolkonsky e a sua preparação para a futura guerra. Alguns temas se desenrolam neste início, como a tensão política, o fracasso da instituição casamento, a superficialidade dos salões nobres e até uma certa admiração pelo inimigo Napoleão, figura heroica por excelência e admirada pelo príncipe. Enquanto Napoleão é um herói lutando por causas e impondo seu nome na História, ele, Andrei Bolkonsky, se vê preso neste mundo totalmente enfadonho da corte e dos salões, ambiente este que é cercado por brigas, fofocas, traição, falsidade e vaidade. Ainda são apresentados outros personagens muito importantes como a já supracitada Natasha Rostova e o ingênuo e sentimental Pierre Bezukhov, interpretado pelo próprio cineasta, que atua com uma sensibilidade e paixão únicas. De certo, Rostova e Bezukhov são os protagonistas mais bem trabalhados e complexos da trama fílmica.
A respeito do roteiro desta primeira parte, nada tenho a dizer, senão reconhecer o capricho e a importância dada a cada um de seus personagens. Vemos um cuidado na distribuição do tempo de tela de cada um, do desenvolvimento de suas histórias e suas motivações. A primeira cena é quase uma mímese das primeiras páginas do romance e percebe-se o cuidado com que a mão do diretor adentra no salão nobre, narrando em terceira pessoa ao mesmo tempo em que a câmera posiciona-se de modo onisciente entre a nobreza mais ilustre da Rússia. A primeira parte da tetralogia, se pudesse definir, seria: conhecendo a corte por dentro. É uma belíssima introdução épica do que vem adiante. No romance realista, as primeiras páginas são totalmente descritivas, quase sem paragrafação, em que o autor capta toda a atmosfera ambiente para, em seguida, desenvolver o enredo. Seguindo o mesmo preceito, o filme Guerra e Paz utiliza não só os primeiros momentos como fundamentais para o desenvolvimento, mas as suas 2h30m inteiras para fundamentar todas as outras partes que virão em seguida.
Neste início, acompanhamos as paixões e os desejos individuais de cada um. As ambições de Andrei em relação à guerra; a admiração passional de Pierre em relação à Rostova; os impulsos inocentes e juvenis de Rostova; as ambições pela fortuna deixada pelo pai de Pierre, que faz com que muitos interesses recaiam sobre ele, entre outros aspectos. Como o nome do longa intitula-se Andrei Bolkonsky, é sobre ele que se trata uma grande parte do argumento. Somos colocados diante de suas ambições, sendo este um herói que ambiciona a glória, o poder e o reconhecimento popular. Ele tem uma fome muito grande por mostrar a sua capacidade, e inspira-se, mesmo que através do ódio pela figura napoleônica, na imponência da imagem do seu inimigo. Andrei quer ser grande como Napoleão.
Este primeiro filme concentra uma síntese dramática dos longas seguintes: aqui temos os períodos de paz e de guerra, subdivididos ao longo da película. Há uma presença fortíssima do narrador em terceira pessoa, que vai contando a história e delineando os fatos, e isso faz parte do propósito desta primeira parte: fazer com que nos familiarizemos com o enredo. Com uma delicadeza ímpar, a câmera-personagem dá conta de realizar um feito notável, que é a mistura do narrador-personagem, em que constantemente somos colocados dentro dos pensamentos do protagonista através da técnica de narração em off, impondo uma complexidade psicologizante no trato narrativo do filme. De fato, o trabalho com a técnica é impecável. Os conhecidos planos-sequência são admiráveis no contexto de guerra, bem como a imensa massa de figurantes em atuação. Ainda no que diz respeito à técnica, o plano-aberto demonstra toda a soberba e a grandiosidade do ambiente fílmico. Nas cenas internas, o long-shot tem como função demonstrar o luxo da corte, abarcando toda a abundância de móveis gigantescos, de quadros enormes que contrastam com os atores diminutos em cena, demonstrando a grandeza do palácio nobre. Externamente, o long-shot tem uma função clara e evidente: abarcar toda a movimentação bélica.
Destaque para o trabalho irretocável dos atores e suas expressões faciais gravíssimas. Guerra e Paz não seria Guerra e Paz sem a construção imagética destas faces tão características. São rostos que falam. E mais: são rostos que singularizam a postura do personagem durante todo o longa. É possível adjetivá-los apenas olhando em seus rostos. A montagem também é muito cuidadosa, e é perceptível que há um trabalho de peso nela através das cenas de transição, que fazem a passagem de um foco ao outro. A trilha sonora – operada por Vyacheslav Aleksandrovich Ovchinnikov, que já tinha trabalhado com Tarkóvski no A Infância de Ivan e no mítico Andrei Rublev – é definitivamente um presente, e é o encaixe perfeito para a unidade de ação do longa.
Com isso, o épico de Sergei, realizado pela Mosfilm, é premiado pelo Grande Prêmio do 4º Festival Internacional de Cinema de Moscou (1965), pelo Oscar de Melhor Filme Estrangeiro (1968) e também ganha destaque no Globo de Ouro por Melhor Filme Estrangeiro (1969). Com um domínio técnico invejável, um desenvolvimento dramático límpido e linear, apresentando densidade e tensão na relação entre seus personagens, Guerra e Paz – Andrei Bolkonsky entrega, para o cinema mundial, uma obra em cujas características aparentam torná-la incontornável na formação cinematográfica de qualquer um. Para nós, meros espectadores, fica o presente que é poder contemplar um longa-metragem que, evidentemente, compõe a nata, ou melhor, a elite do cinema.
Guerra e Paz, parte I – Andrei Bolkonsky (Voyna i Mir) – URSS, 1965.
Direção: Sergei Bondarchuk
Roteiro: Sergei Bondarchuk, Vasiliy Solovyov (baseado no romance de Liev Tolstói)
Elenco: Ludmila Savelyev, Sergei Bondarchuk, Vyacheslav Tikhonov, Oleg Tabakov, Irina Skobtseva, Anastasiya Vertinskaya, Antonina Shuranova.
Duração: 146 min.