Não é como se Guerra Conjugal fosse tão alegoricamente brilhante e apegado à ideia de “desejo” quanto Vereda Tropical. Isso não. Este último é irreplicável, incomparável, mesmo sendo lançado dois anos depois daquele. Ainda que façam parte de um mesmo universo, Vereda é completo, enquanto este outro, indefinido. Os problemas da linearidade em Guerra Conjugal são muitos, talvez justificáveis pela imposição de um surrealismo que, inexistente, possa existir unicamente na atmosfera nonsense da obra.
Muito mais livre, num método desapegado, com montagem picotada que oferece espaço a uma continuidade dúbia e exageradamente fragmentada, fundando uma desconexão nada chamativa ou mesmo inteligente entre os três contos que rearranja dentro da película, o penúltimo longa-metragem de Joaquim Pedro quer abraçar este subgênero brasileiro da pornochanchada mas acaba pecando na falta de uma profundidade que lhe é característica. Profundidade que encontramos nas alegorias que compõem o seu proibido Vereda Tropical.
O que um advogado tarado, um casal disfuncional e um jovem ninfomaníaco partilham entre si na ideia total do filme? Encontramos um longa-metragem em forma de puzzle, e melhor seria tê-los, os contos, separadamente a vê-los através dessa montagem fílmica que ora vai e ora vem, que ora continua, ora descontinua. Irregularidade parece ser o termo exato para definir essa bagunça pervertida a que chamou de Guerra Conjugal. Como o próprio título insinua: uma guerra. Não se completam.
Adaptando múltiplas obras de Dalton Trevisan, o arriscado filme de Joaquim Pedro de Andrade mergulha em três enredos a respeito da perversão e do desejo, a saber: um primeiro que narra um casal de idosos cuja relação é além de conflituosa, na qual não há amor, paixão, nem desejo, apenas repulsa e uma espécie de representação thanática de Eros e Thanatos; um segundo que explora um curioso advogado interpretado por Lima Duarte, personagem que não consegue evitar a patologia de ser tarado compulsivamente; e um terceiro que enfoca um jovem na idade de ouro da juventude explorando seus desejos com mulheres de todas as idades. No geral, as histórias não se cruzam entre si, mas funcionam absolutamente separadas por universos distintos, conectadas apenas por um assunto que as une de maneira oblíqua, torta. É preciso forçar muito uma ideia de conexão entre elas se não quisermos apontar, de uma vez por todas, que o filme é episódico e irregular.
O cineasta tem uma visão de massas: utiliza de um gênero em alta no Brasil para poder cooptar o público geral. Estratégia interessante. Adapta-se ao gosto geral. Sinto que há uma pressa ao mesmo tempo em driblar a censura imposta pela ditadura militar e fazer com que a população brasileira se interesse por sua obra. No mainstream, não se buscava mais tanto o drama, mas comédia sexuais de caráter duvidoso. É claro que, de fato, a pornochanchada foi uma ironia fina e cortante que destilava odiosamente seu veneno sobre o moralismo ditatorial dos anos 70 e 80, desnudando uma classe média que, de dia, pregava bons costumes, contra os prazeres da carne, contra a representação sexual do prazer mas que, à noite, se esbaldava numa atividade sexual moralmente suja, anti tradicional, anti família, pró adultério, numa espécie de suruba social que mistura prazer e perversão em seus graus mais elevados.
Ser hipócrita nunca fora o bastante, era preciso de mais. Joaquim assim leu a classe média e assim a representou. Guerra Conjugal fora censurada por meses a fio, sendo liberada apenas para maiores de dezoito anos. O cineasta sutilmente aponta para isso através de enquadramentos que indicam coisas: como uma cadeira que, de longe, aparenta ser a forma de uma vulva ou mesmo na pintura que vemos no escritório do advogado que é nada mais nada menos que o Canto IX dos Lusíadas, quando Vasco da Gama ao aportar na Ilha dos Prazeres é recepcionado por lindas ninfas do sexo que lhe oferecem os mais deliciosos prazeres da carne. Que me perdoe Camões por tamanho reducionismo de um dos cantos mais sublimes de toda a história da literatura, é que Joaquim Pedro de Andrade o avacalha.
O filme é multigênero. Comédia, drama, surrealismo, chanchada. Não se prende a um gênero só e talvez isso seja o motivo de tamanho incômodo, pois mistura ao seu bel prazer tudo o que lhe vem na mente, numa aparente falta de método, como se fizesse apenas por fazer. O casal de velhos representa o drama; o advogado a comédia chanchada; e o jovem ninfo uma mistura dos três. Cada parte compõe um gênero distinto, como um livro de contos. Talvez seja isso o que o cineasta intentasse, mas esteticamente destoa. Se posso compará-lo a adaptação que Pier Paolo Pasolini fez dos contos infames de Boccaccio, O Decamerão, encontramos inconsistências na estrutura contística brasileira e que partem sobretudo do seu ritmo fragmentado e impreciso.
Guerra Conjugal tensiona o conflito entre o interno e o externo, entre a vida pública e privada no seio de um regime militar em vigência, explorando temas que abrangem da violência ao poder, da luxúria à degradação moral. Parece-me que, quando olhamos mais atentamente, cada personagem representa uma espécie de Brasil, do campo a cidade, das suas censuras às libertinagens que habitam essas esferas do público-privado e Joaquim as demonstra sem amarras ou censuras. Contudo, a irregularidade da estruturação da forma do filme deixa a desejar tanto quanto aquilo a que se pode chamar de “psicologia de personagem”, que pouco diz senão de seus caráteres entrevistos pelas ações taradas que produzem, mas sem impacto visual ou narrativo. A superficialidade parece ser regra neste proibido Joaquim Pedro, embora sua mise-en-scène sempre tenha muito a dizer com suas sugestivas ambientações. No fundo, mantém-se fiel ao seu projeto inicial cujas intenções sempre estiveram ligadas aos problemas brasileiros e suas contradições. E aqui não parece ser diferente de suas outras obras: reflexão crítica da psicologia brasileira mas numa roupagem descontraída, talvez mais ácida, mas visivelmente menos interessante.
Guerra Conjugal (Brasil, 1975)
Direção: Joaquim Pedro de Andrade
Roteiro: Joaquim Pedro de Andrade (Adaptação de Dalton Trevisan)
Elenco: Lima Duarte, Jofre Soares, Carmem Silva, Carlos Gregório, Ítala Nandi, Analú Prestes, Carlos Kroeber, Cristina Aché, Dirce Migliaccio, Elza Gomes, Maria Lúcia Dahl, Oswaldo Louzada, Lutero Luiz, Wilza Carla, Zélia Zamyr, Maria Veloso, Virginia Moreira
Duração: 90 min.