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Crítica | Guerra Civil (2024)

Nação dividida, filme hesitante.

por Ritter Fan
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Lembro-me como se fosse ontem que, quando estava saindo da sessão de Dunkirk, uma jovem a poucos passos na minha frente reclamava com o namorado (ou irmão, amigo, sei lá) que o filme não mostrou quem era o inimigo. Em um primeiro momento, a superfície do comentário dela me fez rir internamente e gargalhar externamente mais a frente, pela inacreditável demonstração de ignorância que acabara de testemunhar. Mas o que atravessou o tempo em minha cabeça foi algo que estava abaixo da superfície e que vejo repetir-se com cada vez mais constância: a aparente necessidade de explicações detalhadas sobre tudo o que é mostrado em tela ou talvez, pior ainda, a incapacidade de muitos de interpretar. Faço esse apontamento, pois algo semelhante vem acontecendo com Guerra Civil, quarto longa-metragem de Alex Garland, que começou sua carreira nessa cadeira com o excelente Ex Machina: Instinto Artificial, que, apesar de elogiado, vem sofrendo críticas sobre a falta de detalhamento do contexto sobre os eventos que levaram ao conflito que serve de pano de fundo para a obra.

Para começo de conversa, apesar de Garland – ainda bem! – não parar seu filme para explicar detalhes sobre a origem e desenvolvimento da segunda guerra desta natureza nos EUA, ele fornece informações mais do que suficientes para que qualquer um com o mínimo de conhecimento sobre assuntos atuais monte o simples, mas aterrador quebra-cabeças que revela a fragilidade até de democracias bem estabelecidas, colocando estados contra estados, irmãos contra irmãos. Não há dúvidas sobre o que ocorreu e não há dúvidas sobre que presidente o ator Nick Offerman representa no pouco em que ele aparece. O problema de Guerra Civil definitivamente não está aí, mesmo que, quase como uma chave inglesa sendo jogada na engrenagem, ele indique que a Califórnia juntou-se com o Texas para começar a secessão, um detalhe que não importa muito, na verdade, mas que parece indicar que o diretor e roteirista não quer criar polêmicas. Seja como for, o problema do filme é de outra ordem completamente.

O problema é tentar compreender o que Garland quer com seu filme. Se sua intenção é extrapolar eventos recentes para entregar uma espécie de cenário “o que aconteceria se…” como uma espécie de alerta para que a história não se repita, ele falha por não conseguir desenvolver sua premissa, já que, como já afirmei acima, a guerra do título é um pano de fundo apenas para uma outra história, esta de jornalistas intrépidos em uma road trip de Nova York até Washington D.C. para tentar entrevistar o presidente entocado na Casa Branca. Apenas para tentar traçar um paralelo elucidativos, rememoremos a primeira obra-prima sci-fi de Alfonso Cuarón, o aterrorizante Filhos da Esperança. No longa de 2007, o cineasta mexicano pouco oferece de contexto para a distopia que retrata, mas consegue fazê-la entremear-se com a narrativa central, fundindo pano de fundo com a perigosa jornada que está em primeiro plano. O contexto é a história e a história é o contexto. Já em Guerra Civil, o contexto poderia ser absolutamente qualquer outro envolvendo um conflito armado se o objetivo não era falar sobre a proposta de uma “história alternativa que não é lá uma extrapolação muito distante do que poderia ter sido”, como é o caso do apocalipse que vemos em A Estrada, de John Hillcoat.

Mas imaginemos, então, que Garland queria mesmo falar sobre correspondentes de guerra em meio a um conflito bélico. Nesse caso, ele usa a quadra central de atores – Kirsten Dunst como Lee Smith, uma renomada fotojornalista; Wagner Moura como Joel, repórter da Reuters e colega de Lee; Stephen McKinley Henderson como Sammy, jornalista do The New York Times e mentor de Lee; e Cailee Spaeny como a aspirante a fotojornalista Jessie Cullen que tem Lee como seu ídolo – para conversar sobre objetividade jornalística, sobre a bravura e desprendimento deles, sobre o quanto o que eles vêm cobra psicologicamente deles e também sobre o quanto uma fotografia vale como denúncia ou pode ser usada como uma forma de se explorar o sofrimento humano. Há peso nessas discussões, mas mesmo aí Garland não assume riscos e envereda por caminhos fáceis. Vemos Lee, caracterizada como uma profissional fria, incapaz de se emocionar publicamente diante do que vê, desmontando completamente no terço final, da mesma forma que vemos Joel, que demonstra prazer em meio a tiroteios e mortandade, perdendo as estribeiras. E, claro, há os personagens de uso único que aparecem tão rapidamente quanto desaparecem, para cumprir uma função específica que, porém, não ressoa tão bem se eles fossem integrais à narrativa central.

No entanto, Garland consegue extrair ótimas performances de Dunst e de Moura. A primeira, aliás, consegue entregar um trabalho de primeira como uma jornalista já completamente dessensibilizada pelo que viu em sua carreira e que faz de tudo para guardar todo e qualquer resquício de sentimento nos recônditos mais profundos de seu cérebro, ainda que isso transpareça, delicadamente, em seu semblante abatido e, por vezes, contorcido. Moura ganhou um texto mais injusto para trabalhar, pois seu personagem parece flutuar demais entre leveza e desespero, mas o ator acerta em cheio mesmo assim. Não sou muito fã da forma como o roteiro telegrafa a relação de Lee com Jessie, inclusive e especialmente a sequência final das duas, e o que isso significa para a atuação de Spaeny, que fica meio presa em uma camisa de força, mas a jovem, que recentemente matou a pau como Priscilla Presley, em Priscilla, continua sendo uma das grandes revelações de tempos recentes.

Para além da atuação, Garland acerta em algumas cenas e breves momentos. A sequência estrelada pelo marido de Dunst, Jesse Plemons, que  sequer é creditado por ter sido chamado às pressas para cobrir a ausência de outro ator, é de dar calafrios na espinha, mesmo que os acontecimentos envolvam os tais personagens de uso único que mencionei e, por isso, não tenham a força que poderiam ter. De maneira mais sutil, temos a cena dos snipers no Paraíso do Inverno que, em poucas palavras, representam exatamente o que é guerra, qualquer guerra: são pessoas atirando porque outras pessoas estão atirando nelas. Pode ser até reducionista, mas é brilhante e na mosca. Finalmente, ainda mais discretas são as menções de Lee e Jessie sobre seus respectivos pais, tranquilos em fazendas do interior americano onde provavelmente a guerra não chegou, fazendo de tudo para simplesmente ignorar o que está acontecendo ao redor deles. Não é o que quase todos nós fazemos todos os dias com tudo de horrível ao nosso redor?

O trabalho de arquitetura sonora do longa, com o uso de tiros e explosões levemente mais altos do que o normal para criar choque em contraste com sequências em que os sons são abafados ou eliminados, é excelente, ainda que não exatamente original, com a fotografia naturalista de Rob Hardy (parceiro de Garland desde Ex Machina) dando o tom que por vezes flerta com o documentário. A trilha sonora composta por Geoff Barrow e Ben Salisbury (ambos também parceiros de Garland) é do tipo que mais aprecio, discreta, pontual e feita para ser “inaudível”, como um complemento subliminar de atmosfera que o diretor quebra com a sincronização de canções pré-existentes.

Guerra Civil, no final das contas, até consegue ter muito a seu favor, mas Garland, quando hesita em realmente investir no que tem, ou seja um contexto recente alarmante para impulsionar uma história de jornalismo destemido (ou sensacionalista, podem escolher), ele acaba sabotando seu filme, como um motorista experiente que, porém, tem medo de passar por cima de quebra molas e reduz a velocidade a quase zero para não causar desconforto nos passageiros. Ainda é uma obra que vale o preço do ingresso, não tenham dúvida, mas o cineasta tinha que ter ousado mais, provocado mais e, no processo, transformado seu longa em uma Hummer que passa por cima de sensibilidades sem dó, nem piedade.

Guerra Civil (Civil War – EUA/Reino Unido, 2024)
Direção: Alex Garland
Roteiro: Alex Garland
Elenco: Kirsten Dunst, Wagner Moura, Cailee Spaeny, Stephen McKinley, Nick Offerman, Sonoya Mizuno, Jefferson White, Nelson Lee, Evan Lai, Jesse Plemons, Karl Glusman, Jin Ha, Jojo T. Gibbs, Juani Feliz, James Yaegashi, Greg Hill, Edmund Donovan, Jess Matney
Duração: 109 min.

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