O gênero de crime/mistério policial é, independente da mídia, uma forma de contar história que cai bastante no lugar-comum, pois existe um certo aconchego artístico em clichês e convenções que acompanham esse tipo de construção narrativa que normalmente não deixam uma determinada obra ser necessariamente ruim, mas confina o potencial para ter o difuso “algo mais”. Recentemente, me encontrei maravilhado com a série da criminóloga Júlia Kendall, que busca na Nona Arte e na criminologia uma maneira de entregar aventuras investigativas diferentes e refrescantes, por assim dizer. E, felizmente, me encontrei numa situação extremamente parecida com Gritos no Silêncio, escrita por Angela Marsons, acompanhando a primeira aventura da complicada detetive Kim Stone.
Logo de cara, é preciso pontuar que a autora não tenta reinventar a roda, e nem é realmente inovadora na sua estrutura e maneira de transmitir sua criação, mas Gritos no Silêncio tem aquele algo mais. O que me atraiu – e me fez devorar o livro em três dias – é o fato da escritora nunca se resignar com o mistério; ela está sempre puxando algum enigma, extraindo alguma pista, desenrolando segredos e constantemente dando combustível ao thriller. Dessa forma, Angela proporciona uma experiência literária rara – pelo menos para mim – em obras de mistério contemporâneas, pois viabiliza uma leitura dinâmica, praticamente obsessiva com o leitor. Você quer descobrir o assassino na mesma medida que a obstinada protagonista, e, afinal, livros de crime/investigação são sobre isso, não? Um vínculo obcecado com a verdade, a descoberta. E não é apenas nisso que a autora sabe trabalhar com o gênero.
Desde o prólogo sobre cinco figuras que se revezaram para cavar a sepultura de uma vida inocente, fazendo um pacto de sangue da vítima em silêncio – isso não é spoiler, aliás, mas a sinopse do livro -, Angela não larga o osso e continuamente desenvolve sua atmosfera investigativa em torno dessa situação inicial. É muito mais uma obra sobre o passado, e a culpa e cicatrizes emocionais que acompanham a dor moral. A própria maneira que uma das vítimas é descoberta fortalece esse discurso, já que é encontrada enterrada em um orfanato, morta há vários anos. Daí entra outro elemento bacana do livro, na mesma ideia de ser uma narrativa sobre um crime distante, da arqueologia mesclada à criminologia. É sensacional a forma que Angela utiliza as ciências em uma abordagem de expor o crime lentamente na inspeção do corpo esquelético, agora com poucos vestígios incriminais, em conjunto à investigação da Kim, sempre de um jeito completamente perturbador.
Aliás, essa questão da perturbação faz parte da identidade da obra. Angela é cruel e perversa, ou melhor dizendo, o mundo é cruel e perverso, e autora confirma isso em descrições criminosas odiosas, inquietantes e hediondas, bastante gráfica mesmo. Ela imprime imagens desumanas com detalhes horrorosos na mente do leitor, solidificando nosso vínculo com a indignação da detetive. A propósito, a repulsa com o crime é também consolidada pelo silêncio do título. Em um exercício de metalinguagem (ou seria metaficção?), a autora desenvolve muito bem a simbologia dos gritos no silêncio, tanto em relação com as vítimas mortas, quanto com as vítimas reais da inocência frente à barbárie humana. Isso é uma questão muito trabalhada com o abuso em orfanatos, e o próprio esquecimento desses indivíduos que se tornam estatística, pedindo socorro em meio a mudez social.
A infância trágica da protagonista é conectada a essa trama de abuso infantil, transformando a investigação em algo pessoal para a protagonista, e a autora manuseia esse artifício com esmero na construção de caracterização e caráter da personagem para o leitor. Ela é meio antipática, hostil e mandona, mas essa personalidade é bem transposta tanto em sua necessidade no ramo, como também no motivo desse constante aborrecimento da protagonista, e à medida que a história avança, me peguei torcendo loucamente pela detetive. Isso acontece porque Angela é muito boa com personagens, delineando ótimos membros secundários na investigação, como o Detetive Bryant, que funcionam mais como elementos da dinâmica policial, mas que, felizmente, nunca caem no abismo de personagens esquecíveis. Ademais, as cinco figuras iniciais, assim como outros personagens que fazem parte desse passado misterioso, ganham ótimos arcos de remorso e arrependimento de um lado, e de transtorno e marcas (bem além das físicas) do outro. Um livro bastante humano, para bem ou para mal – mais para o mal.
Angela Marsons estreia em romances com Gritos no Silêncio de um jeito marcante e promissor. A autora equilibra muito bem o thriller e o mistério com twists de nos deixar malucos e tensos com situações tão violentas, tão podres, que o leitor fica perturbado mas em nenhum momento quer colocar o livro de lado. Angela alia a atmosfera ao choque, dispondo de um enriquecedor elenco, especialmente nossa protagonista e o/a vil assassino/assassina – qual é, não posso deixar uma pista, he, he. Uma baita primeira aventura para a detetive Kim Stone.
Gritos no Silêncio (Silent Scream) — Reino Unido, 2015
Autor: Angela Marsons
Editora original: Bookouture
Edição lida para esta crítica: Editora Gutenberg (12 de julho de 2018)
Tradução: Marcelo Hauck
314 páginas