Seguindo a estratégia de ficcionalizar personagens e situações relacionadas ao tráfico de drogas na América Latina iniciada com Narcos e, depois, com Narcos: México, o Netflix traz à tona a história de Griselda Blanco que, segundo ninguém menos do que o próprio Pablo Escobar, em frase que abre o primeiro episódio, era a única pessoa de quem ele tinha medo. A minissérie, que não se conecta com as anteriores nesse, digamos, universo compartilhado, é muito claramente um veículo para que Sofía Vergara, mais conhecida como a hilária “esposa-troféu” Gloria Delgado-Pritchett da longeva, mas já encerrada sitcom Modern Family, possa mostrar seus dotes dramáticos e, nesse quesito, a obra criada por Doug Miro, Eric Newman, Carlo Bernard e Ingrid Escajeda, funciona.
Mas a pergunta realmente importante é se Griselda consegue ir além de sua personagem central e oferecer uma narrativa realmente engajante. Curiosamente, por uma decisão artística que, desconfio, conecte-se com a necessidade de situar a narcotraficante colombiana em um momento de sua vida que “bata” mais ou menos com a idade de Vergara, a minissérie começa com Griselda já fugindo para Miami com seus três filhos no final da década de 70. Com isso, muito de sua história pregressa, aparentemente repleta de situações pitorescas que, verdadeiras ou não, fazem parte do arcabouço lendário que essas figuras costumavam cultivar, fica efetivamente em seu passado, com a minissérie não se fazendo de rogada em trabalhar a premissa do “recomeço”, que parte da recusa da protagonista em procurar uma vida diferente da que vivia, e usa como verdadeiro catalisador sua ambição em não só firmar-se no tráfico de cocaína na rica cidade americana, como dominá-lo completamente.
Mesmo usando uma maquiagem no rosto que eu até agora me debato se era realmente necessária por ninguém realmente conhecer Griselda Blanco a ponto de exigir essa transformação visual de Vergara, a atriz convence com seu jeito de ser ao mesmo tempo feminino e truculento, amoroso e raivoso que leva ao ambiente da criminalidade a luta das mulheres por igualdade com os homens no espaço de trabalho, algo que é ecoado pela foco subsidiário na policial June Hawkins (Juliana Aidén Martinez) que tem trajetória convergente com a de Griselda ao longo dos seis episódios. Os roteiros, nesse aspecto, usam de expedientes bastante didáticos e consideravelmente repetitivos para deixar bem claro o quanto os homens não aceitam mulheres inteligentes e bem-sucedidas ao seu redor, algo que, apesar de importante e socialmente relevante, acaba cansando pela maneira quase tacanha com que isso é explicitado uma, duas, 10, 30 vezes em uma minutagem tão acanhada.
Também tenho reservas com a forma como a produção mostra Griselda transpondo os vários obstáculos que encontra em sua jornada meteórica por Miami. No lugar de encontrar um meio termo mais natural e fluido, tudo o que os roteiros fazem é seguir a estrutura de “Griselda tem uma ideia brilhante e a executa perfeitamente, somente para tomar um tombo em seguida, o que a leva a ter uma ideia brilhante que é executada perfeitamente” e assim por diante. E invariavelmente isso acontece com a câmera focando em seu rosto no momento “Eureka”, normalmente precedido dela usando o cigarro aceso para “desenhar no ar” qualquer linha reta que está em seu campo de visão. Chega a ser hilário como a direção de Andrés Baiz não tenta nada fora da caixinha para lidar os conceitos repetitivos vindos dos roteiros. Tudo é telegrafado minuciosamente e entregue de bandeja, não deixando nenhum espaço para o espectador pensar um pouco em mais um daqueles clássicos casos em que a produção subestima absurdamente seu público-alvo.
Entre momentos de violência de toda sorte, uma investigação policial um tanto quanto parada e as tais “ideias” de Griselda, a minissérie pouco desenvolve personagens coadjuvantes que parecem existir apenas para cumprir funções muito específicas e não para povoar e enriquecer a vida da protagonista. Não quero com isso dizer que personagens como o guarda-costas elevado a marido Dario Sepúlveda (Alberto Guerra), a amiga e dona de uma agência de viagens Carmen Gutiérrez (Vanessa Ferlito) e até o psicótico Jorge “Rivi” Ayala-Rivera (Martin Rodriguez) não sejam interessantes, pois eles são, mas sim que eles existem muito claramente como metafóricos botões que são apertados nos momentos certos para fazerem o que foram programados para fazer. E sim, sei que coadjuvantes costumam, em linhas gerais, ser assim mesmo, mas o problema é que, aqui, os roteiros deixam o espectador entreverem os botões e isso contribui para uma imersão apenas parcial na história.
Enquanto a ascensão de Griselda, apesar dos pesares, ganha uma boa construção, não posso afirmar o mesmo de sua queda. Aliás, muito pelo contrário, pois ela acontece ao longo de uma festa de aniversário de Dario, com Griselda empunhando uma Uzi de ouro, fumando crack e cometendo as maiores barbaridades possíveis. Isso pode ter acontecido na realidade? Claro que sim, mas não importa, pois, cinematograficamente, essa desconstrução de seu império é brusca, mal conduzida e até mesmo completamente fora de caráter em relação a tudo o que aprendemos na série sobre a “Madrinha”. Quase fica parecendo que os criadores da série escreveram algo para durar oito episódios e foram podados pelos donos do dinheiro no último minuto.
Seja como for, Sofía Vergara provou que pode atuar para além de seus dotes físicos e a comicidade que ela desenvolveu ao longo de 11 temporadas de sua sitcom. É só uma pena que Griselda, no final das contas, acabe sendo prejudicada por roteiros muito mais preocupados em dar esse espaço à atriz na base do custe o que custar, sem realmente fazer a personagem que ela vive alguém memorável por seus próprio méritos.
Griselda (Idem – EUA, 25 de janeiro de 2024)
Criação: Doug Miro, Eric Newman, Carlo Bernard, Ingrid Escajeda
Direção: Andrés Baiz
Roteiro: Ingrid Escajeda, Doug Miro, Brenna Kouf, Cassie Pappas, Giovanna Sarquis
Elenco: Sofía Vergara, Alberto Guerra, Martin Rodriguez, Juliana Aidén Martinez, Vanessa Ferlito, Christian Tappan, José Zúñiga, Jose Velazquez, Orlando Pineda, Martin Fajardo, Fredy Yate, Camilo Jiménez Varón, Diego Trujillo, Maximiliano Hernández, Michael Reilly Burke, Carolina Giraldo, Paulina Dávila, Alejandro Barrios, Gabriel Sloyer, Julieth Restrepo
Duração: 329 min. (seis episódios)