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Crítica | Grease: Nos Tempos da Brilhantina

por Gabriel Carvalho
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“Não importa se você vence ou perde, é sobre o que você faz com os seus sapatos de dança.”

Contém spoilers.

Com o surgimento do cinema falado, Fred Astaire e Ginger Rogers passaram a sapatear, encantando algumas salas de cinema, enquanto, em outras, os sonhos de uma garota do Kansas eram transmitidos para o público de uma maneira altamente imersiva. O cinema norte-americano, portanto, era a magia plena, com histórias muitas vezes simples, um final, em suma, agradável e números musicais dignos das produções mais ambiciosas da Broadway. O cinema clássico era norte-americano, com os vanguardistas europeus entendendo com uma visão crítica o que estava acontecendo no outro continente, salvo das consequências diretas de duas guerras mundiais. Esta era de ouro, contudo, embora marcada por clássicos grandiosos como O Mágico de OzCantando na Chuva e A Noviça Rebelde, começara a ver a urgência pelo seu “término” no final da década de 60, dado o surgimento da Nova Hollywood. Influenciado pelo cinema europeu, que já havia redefinido o olhar do artista sobre o que o cinema poderia ser, esse movimento cinematográfico quebrou com os padrões do cinema americano feito à “moda antiga”, adequando-se ao público da época, que buscava um cinema mais sério, com mensagens mais relevantes a serem passadas. Em consequência ao lançamento de Bonnie e Clyde: Uma Rajada de Balas e A Primeira Noite de um Homem, ambos de 1967, além da queda da censura, o cinema duro, realista e sem o propósito de passar mensagens moralistas era uma realidade nos Estados Unidos.

Mas como o gênero dos musicais conseguiria se encaixar dentro dessa nova onda cinematográfica? Mesmo que os filmes estrelados por Elvis Presley e pelos Beatles, figuras que, na época, também subvertiam o mundo da música até então, estivessem conseguindo atingir seus respectivos nichos, os musicais em si, aparentemente, estavam fadados ao esquecimento, ao menos que fossem revigorados. Afinal, a brutal realidade da sociedade pessimista dificilmente estaria aliada com encenações de gangues opostas enfrentando-se em espécies de concursos musicais. A exemplificar a retomada musical, uma das obras a serem citadas é Cabaret, de 1972, que já se adequava perfeitamente ao novo jeito de se fazer cinema, apresentando-se como um musical mais robusto, mais pesado, que permitia-se ser distanciado perfeitamente da aura de outrora, clássica. Sendo assim, na Broadway, o teatro musical também via o surgimento de peças mais agressivas, entre elas Grease, de 1971, que viria a ganhar uma versão cinematográfica em 1978 – e que, 40 anos depois, viria a se tornar o objeto de análise desse texto, interessado em entender o fenômeno que é este longa-metragem. De certa forma, não é como se a obra em questão simbolizasse certeiramente o que era esse final dos anos 70 para a indústria cinematográfica norte-americana, mas o sucesso é consequência de uma aceitação do público, não tão inocente quanto o de antes, mas não tão revoltado quanto o de antes. No momento, ele só quer ser nostálgico e retornar à ingenuidade dos anos 50. Quase como um escapismo, possivelmente saudável, que tornou a produção um dos maiores sucessos musicais da história.

Somos transportados para os tempos da brilhantina, distantes da atualidade. Em um primeiríssimo plano, nesse mundo criado como escape, mas com situações a nos fazer repensar, em níveis menos corroídos, a realidade daquela época, o público é apresentado a Sandy Olsson (Olivia Newton-John) e Danny Zuko (John Travolta), um casal de adolescentes apaixonados, que vivenciam, ainda bastante jovens, noites de verão extremamente mágicas. Todavia, ambos se despedem, pois Sandy irá voltar para a Austrália. A simplicidade da história não é à toa: a garota acaba, coincidentemente, permanecendo e o acaso a faz ser matriculada na mesma escola que Danny. Com o esperado reencontro entre os dois acontecendo, as diferenças surgem e delas, um conflito de personalidades distintas de um casal que, no “mundo real”, com deveres de casa, anseio por popularidade e aceitação social, lutam para reaver a paixão de um verão livre, sem qualquer amarra com as correntes da sociedade. Debaixo de um pretexto mais familiar, movido por uma linha narrativa de costume, há alguns retratos da adolescência californiana do final dos anos 50: drogas, sexo, gravidez indesejada, confronto de gangues rivais, entre outros. No entanto, perceptivelmente, todas essas temáticas são bastante suavizadas se comparadas com as abordadas no musical de 71, mesmo que nunca subtraídas por completo, fazendo-se, apesar disso, presentes de uma maneira extremamente competente. Ainda assim, o roteiro de Bronte Woodard e Allan Carr não se esforça em entregar uma história mais complexa, embora seja preciso ressaltar que o roteiro, de fato, não se propõe a fazer isso.

Sendo um musical lançado décadas atrás, algumas anacronias surgem quando pensado o papel da protagonista feminina, hoje, na obra. Enquanto Sandy é forçada a passar por diversas mudanças gigantescas para ficar finalmente com Danny, o personagem de John Travolta sofre apenas algumas pequenas crises de consciência, que nunca se transformam em algo concreto. Não há uma real devoção do roteiro em ser imparcial e neutro sobre o modo “correto” de se comportar. Por outro lado, Grease é uma obra que assume o comportamento da adolescência “rebelde” daquele tempo mais pueril, que fuma, bebe e organiza corridas de carro ilegais, sem nunca criticá-la por isso, o que tenderia para uma visão mais moralista. Na excepcional There Are Worse Things I Could Do, o julgamento tóxico é criticado, entendendo-se certos acontecimentos como, talvez, infelicidades, mas nunca como pecados abomináveis, incompreensíveis e inconciliáveis com o que cidadãos de bem proclamariam ser características da “família tradicional norte-americana”. Pode-se dizer que, na verdade, o roteiro faz um estudo sobre os comportamentos masculinos e femininos da época. Em tempo, dificilmente um garoto mudaria o seu jeito de agir para ficar com a mocinha, reflexo claro de uma sociedade machista. Tudo, porém, fica na dimensão das suposições, mas que, na visão mais negativa possível acerca do escopo geral, é incomparável com obras que definitivamente ficaram datadas. Grease: Nos Tempos da Brilhantina ainda é extremamente divertido e apreciável nos dias de hoje, uma marca a ser realçada.

Um olhar notável em relação a obra, dessa forma, é seu viés lúdico, ponto crucial do primeiro trabalho em uma longa-metragem do diretor Randal Kleiser, que, infelizmente, nunca mais conseguiria emplacar um grande sucesso como este. Para atingir os seus objetivos, o cineasta molda as cenas de maneira a torná-las bastante divertidas, imprimindo uma estética jovial ao filme, mas também incrivelmente atemporal, relacionando-se com juventudes de gerações diferentes. A corrida de carros entre os T-Birds e os Scorpions é cinema despretensioso, que entretém e empolga. Corroborando com essa jovialidade fílmica, as cores são vibrantes, dando ainda mais vida à obra, graças ao ótimo trabalho do figurinista Albert Wolsky. O conjunto ainda possui uma veia cômica muito apurada, salientada durante alguns momentos impagáveis, como a sequência de cenas nas quais Danny tenta encontrar-se em algum esporte. De uma trama morna, provinda de um roteiro simplíssimo, surge uma narrativa interessante, engraçada e energética. Curiosamente, o elenco de estudantes é todo formado por atores muito mais velhos do que o papel pede. Por exemplo, Michael Tucci, interpretando um dos T-Birds, Sonny Lattiery, não está muito bem na fita, sendo o membro mais infantil do grupo, mesmo tendo, entretanto, mais de 30 anos na época das gravações. O casting, tenebroso de início, é ovacionado quando, apesar das incoerências, não ameça, nem um pouco, o resultado final, sendo, assim como somos transportados para os nossos 18 e poucos anos, convencidos como tendo 18 e poucos anos.

No mais, das personagens realmente importantes para a obra, a rebelde Betty Rizzo, interpretada por Stockard Channing é a figura com mais camadas do filme, começando como uma garota incrédula, pessimista e irresponsável. Contudo, com o tempo e a ocorrência de alguns eventos pontuais, o arco proposto pelo roteiro vai amadurecendo-a, metamorfoseando o seu pensamento e a sua particularidade de olhar para a vida. O ótimo trabalho de figurino atinge um ápice na transposição das cores apáticas das suas vestes, no primeiro ato do filme, para um roxo mais alegre, no final do segundo. Ademais, o próprio namorado de Rizzo, Kenickie Murdock (Jeff Conaway), contribui com a movimentação do arco da personagem, mas em uma análise mais aprofundada, o ator está apenas decente como melhor amigo de John Travolta, possivelmente interessando ao público ver um estudo mais alongado da amizade do personagem com Danny – o maior papel da carreira de John Travolta, junto com Pulp Fiction, de 1994. Já sobre o protagonista, por ter participado brevemente do musical homônimo – assim como Conaway -, o ator veio preparado para dançar e cantar, excelentíssimo, invocando todos os trejeitos e poses características que o personagem pede, transmitindo-os, portanto, de forma bastante natural. Em níveis comparativos, é muito interessante comparar a maneira como Danny comporta-se com seus amigos com a maneira como ele comporta-se com Sandy. Enquanto está com os T-Birds, ele tenta se provar o maioral, chegando a uma arrogância ácida. Mas quando está contracenando apenas com Olivia Newton-John, ele torna-se mais leve, um tanto bobo, bastante espirituoso.

Igualmente a sua contraparte, Olivia é outra que está impecável, sendo que o conjunto dela com Travolta, dupla em projetos posteriores, denota uma química poderosíssima, mas que, infelizmente, nunca viria a ser explorada com decência noutros longas futuros. A mudança é enorme, tanto nas roupas vestidas, novamente pontuando-se o belíssimo trabalho de Woslky, quanto na própria performance. A irônica Look at Me I’m Sandra Dee, interpretada por Stockard Channing, assim como ataca os comportamentos de Sandy, sem qualquer interesse em tornar-se alguém que, até aquele ponto, ela não era, é um imenso “tapa na cara” da Velha Hollywood, destruindo o gosto da burguesia. Sendo assim, a melancolia da próxima canção interpretada por Channing, a já citada There Are Worse Things I Could Do, é um adendo para a maravilhosa contribuição da atriz em termos musicais. Mas o amor sentido pela personagem não poderia funcionar se não fosse a emocionante Hopelessly Devoted to You, indicada ao Oscar. Ao mesmo tempo, o eterno Danny, John Travolta, quando performa Sandy, alcança efeito semelhante ao trabalhado por Olivia em sua canção-chave. Grease: Nos Tempos da Brilhantina, aliás, com Beauty School Drop Out, canção que fala da frustração profissional de forma tão delicada quanto aguda, nos envolve com a charmosa apresentação de Frankie Avalon, também encontrando espaço para criticar uma juventude impulsiva, sem aquele mesmo amor pelos sonhos impossíveis de serem alcançados, parte do escopo de um cinema clássico.

Contudo, como abordado no início do texto, essa não é apenas uma comédia romântica sobre as desventuras da vida adolescente, mas um musical, posterior aos que o público via nos anos 40 e anterior ao desinteresse de Hollywood em produções do tipo. As músicas, por muito tempo, eram corações de várias obras, destinadas a serem memoráveis nessa costura audiovisual. E que coração tem Grease! O filme começa com uma abertura embalada pela excelente Grease is the Word, dando nome à frase estampada nos pôsteres da época. Já Greased Lightining é uma homenagem ao rock n’roll da década de 50, com versos polêmicos, mas, todavia, uma melodia inesquecível. A mais simples, porém incrível, We Go Together, finalmente, encerra com chave de ouro o filme, promovendo uma das maiores exaltações de alegria já vistas no cinema. Ademais, as clássicas Summer Nights e You Are The One That I Want  não necessitam de muitos comentáriosambas magníficas. Enquanto a primeira trabalha uma diferenciação da visão masculina e feminina sobre o romantismo na década de 50, é na segunda que vemos, pela primeira vez, Danny e Sandy em perfeita sintonia. Em decorrência disso, é impossível negar que Grease é perfeito – musicalmente falando. Apesar dos pontos contrários, como filme romântico voltado para adolescentes, a obra continua sendo muito boa. A costura entre os dois itens torna tudo mais agradável, fluindo impressionantemente. Levando isso em conta, Grease é, sem sombra de dúvidas, um dos maiores musicais de todos os tempos, moldado por protagonistas carismáticos, uma trilha sonora irretocável, uma narrativa ágil e uma alma única e atemporal.

  • Publicado originalmente em 22 de janeiro de 2017. Atualizado para republicação na ocasião do aniversário de 40 anos.

Grease: Nos Tempos da Brilhantina (Grease) — EUA, 1978
Direção:
 Randal Kleiser
Roteiro: Allan Carr, Bronte Woodard
Elenco: John Travolta,  Olivia Newton-John,  Stockard Channing, Jeff Conaway, Barry Pearl, Michael Tucci,  Kelly Ward, Didi Conn, Frankie Avalon
Duração: 110 min.

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