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Crítica | Gótico (1986)

Uma versão ficcional do Verão Assombrado de 1816 (ou da gênese de Frankenstein).

por Leonardo Campos
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Para quem conhece a gênese de Frankenstein, de Mary Shelley, sabe que o evento conhecido como “O Verão Assombrado de 1816” remonta a um período singular e climático que teve profundas repercussões na literatura, especialmente na obra-prima da escritora britânica. Para entender o significado desse período e seu impacto na vida e obra da autora, é essencial considerar não apenas as condições atmosféricas, mas também o contexto social e cultural que cercava os escritores da época. Na versão cinematográfica do evento, os realizadores de Gótico condensam todo o período em apenas uma noite, escolha dramática e narrativa que gera uma avalanche de sensações para os personagens e, consequentemente, para nós, espectadores. Em 1815, uma erupção vulcânica massiva do Monte Tambora, na Indonésia, lançou uma quantidade colossal de cinzas e gases na atmosfera. Essa erupção, considerada uma das mais poderosas da história, resultou em um fenômeno climático global em 1816, caracterizado por temperaturas anormalmente baixas e um clima imprevisível. As consequências foram severas: colheitas falharam na Europa, há muita chuva e o verão foi marcado por um resfriamento extremo, levando a uma escassez de alimentos e dificuldades para a população.

No livro Frankenstein: Anatomia de Monstro, de Kathryn Harkup, publicado no Brasil pela editora Darkside Books, nós podemos contemplar uma análise panorâmica, mas bastante abrangente, desse período peculiar.  Durante esse verão atípico, um grupo de escritores se reuniu na Villa Diodati, à beira do Lago de Genebra, na Suíça. Os membros desse grupo incluíam não apenas Mary Shelley, mas também seu futuro marido, Percy Shelley, juntamente com Lord Byron e John Polidori. O clima sombrio e inclemente forçou os participantes a permanecerem em ambientes fechados. Para passar o tempo, Byron propôs um desafio: que cada um escrevesse uma história de terror. Esse desafio seria o catalisador que levaria Mary Shelley a criar Frankenstein, romance que exploraria os limites da ciência, a natureza humana e as consequências de desafiar a ordem natural, sendo um dos clássicos com maior potencial de “atualidade” quando mencionado em nosso contexto contemporâneo. A chamada “Noite de Histórias” na Villa Diodati não foi apenas um evento mundano, mas um momento de efervescência criativa, impulsionado pela atmosfera perturbadora que os cercava, emulada de maneira eficiente na proposta visual de Gótico.

Dirigido por Ken Russell, cineasta que toma como guia, o roteiro de Stephen Volk, temos ao longo de Gótico, a história sobre o mencionado evento na Vila Diodati. Lançado em 1986, numa época dominada pela onda slasher como ponto nevrálgico do terror, o filme condensa o tal verão assombrado em apenas uma noite, para entregar, por meio dessa elipse, um manancial de passagens envolvendo pesadelos, paranoias, clima de incerteza, dentre outros elementos que estão comumente associados ao estilo gótico. Há, em seu desenvolvimento, bastante teatralidade, doses generosas de surrealismo e imagens imponentes, dissociadas dos padrões comuns ao cinema hollywoodiano, algo que nos explica por meio do exemplo, isto é, pela via da ilustração do próprio produto do realizador, os motivos que o levaram a ser um cineasta considerado “marginalizado” pelo mainstream. É um filme que define bem as peculiaridades da modernidade, interessada em abrir as cortinas dos bastidores e desvendar os possíveis segredos por detrás de obras clássicas da história. Nesse caso, o clássico gótico Frankenstein, além dos primeiros passos do vampiro antes de Bram Stoker conceber Drácula, no final do século XIX.

Mary Shelley, interpretada por Natasha Richardson, é a personagem mais equilibrada do grupo. Seu posicionamento em cena é um contraponto das loucuras cometidas por Lord Byron (Gabriel Byrne), exilado na Suíça por conta de seu comportamento polêmico na Inglaterra, ainda mais conservadora que hoje. Em Gótico, ele é um personagem perverso, histriônico, dominado pela insanidade. Percy Shelley (Julian Sands), por aqui, parece guiado pela postura do amigo poeta, ora em momentos de calmaria, ora tragado pela loucura absoluta. John Polidori (Timothy Spall), o médico constantemente ridicularizado por Byron, assume o estereótipo do “esquisito” em cada um dos trechos em que aparece nos 87 minutos da trama. Mesmo sendo esse um dos projetos mais modestos de Russell, o realizador não deixa de iluminar os pontos mais densos do roteiro de Volk, temas que coadunam com sua cinematografia, dentre esses, alfinetadas em crenças religiosas socialmente arraigadas, a celeuma do moralismo e os anseios humanos diante da liberdade sexual e do contexto que geralmente tolhe impulsos nesse segmento.

Um filme desse tipo requer a construção de uma boa atmosfera. Para isso, o realizador contou com uma equipe eficiente. Na direção de fotografia de Mike Southon, temos a captação de imagens deslumbrantes, em especial, as cenas com momentos alucinógenos envolvendo Percy Shelley, completamente drogado, e o famoso pesadelo que teria inspirado Mary Shelley, a transformando na escritora responsável por um dos romances mais famosos da literatura: Frankenstein ou o Prometeu Moderno. O design de produção de Christopher Hobbs é muito eficiente na estruturação de um espaço fílmico que integram a realidade e o onírico, elementos potencializados pela condução musical de Thomas Dolby, responsável pela textura percussiva densa. Em simbiose, esses setores conduzem o projeto de Russell, carregado de alegorias visuais constantes e simbolismos dispostos em tela para interpretação dos espectadores, numa narrativa que vai além dos clichês e entrega cenas para um público que esteja preparado para perversões, sexualidade que leva ao desconforto aqueles mais pudicos, bem como uma série de excentricidades. Gótico, em linhas gerais, é um enredo de entretenimento? Sim, lógico. Mas é, também, uma daquelas aulas cinematográficas para interpretação de textos verbais e não verbais. Nada é entregue aleatoriamente. Tudo é colocado com o propósito de instigar.

Gótico (Gothic | Reino Unido e Irlanda do Norte, 1986)
Direção: Ken Russell
Roteiro: Stephen Volk, Lord Byron, Percy Bysshe Shelley
Elenco: Gabriel Byrne, Julian Sands, Natasha Richardson, Myriam Cyr, Timothy Spall, Alec Mango, Andreas Wisniewski, Dexter Fletcher, Pascal King, Tom Hickey
Duração: 87 min

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