- Contém SPOILERS moderados da temporada. Confira aqui, todo nosso material sobre a série.
Uma das coisas mais interessantes da mitologia do Batman é a sua cidade, lar dos criminosos mais perversos do universo DC, conhecida popularmente como reino da corrupção política e policial sistemática, onde um jovem menino perde os pais multimilionários num beco escuro após uma peça de teatro e a partir daí decide com todos os recursos herdados a ele, fazer alguma coisa, se tornando o vigilante que tanto conhecemos. No entanto, a proposta de Gotham não está em estabelecer mais uma origem do Cavaleiro das Trevas, por mais que a caminhada de Bruce Wayne (David Mazouz) para esse destino seja parte integra na história, o projeto é essencialmente uma série policial, protagonizada por Jim Gordon (Ben McKenzie), mostrando seu início de carreira e as dificuldades que enfrentou para ser um comissário de personalidade honesta em meio a arredores tão sujos.
Considerando a vastidão canônica a se explorar, a narrativa de Gotham escolhe não ser exatamente procedural. Existem casos trabalhados em episódios isolados, mas há sempre um direcionamento progressivo a concepção de todo o universo da cidade em tom de origem para as histórias originais, especialmente na construção de vilões. Há uma tática bastante interessante em usar casos da semana “originais” e brincar com a percepção de algumas referências do canon neles utilizadas, de modo a serem ou não aproveitados no futuro para fragmentar a criação de um novo vilão – Coringa, Espantalho, Capuz Vermelho são alguns que ameaçam a serem introduzidos –, sem deixar de aproveitar o momento de investigação para o desenvolvimento da dinâmica buddy cop entre Gordon e seu parceiro detetive Harvey Bullock (Donal Logue), que faz o contraponto perfeito como o policial experiente já entregue as condições do sistema. A química entre os dois é um belo par de sustentáculo nessa primeira temporada, que demora um pouco para engrenar, mas logo, logo, assim como uma sitcom, consegue estabelecer uma simpatia ao telespectador no costume de acompanhar a vivência da dupla naquela ambientação.
Em seus melhores momentos, Gotham insere até um clima de filme de máfia, não exatamente digno de um Scorsese, mas suficientemente estimulante para estabelecer constantemente um grau de periculosidade circundando-os na redoma de cada capítulo. Os núcleos das famílias Maroni – representada por Sal Maroni (David Zayas) – e Falcone – representada por Carmine Falcone (John Doman) – e a comandada pela ótima personagem original Fish Mooney (Jada Pinkett Smith) são sempre bastante interessantes de se acompanhar pelo caráter volátil das suas relações, pois no meio de tudo, estão contando a origem de um jovem Pinguim (Robin Lord Taylor) querendo ter seu espaço no domínio na cidade, manipulando constantemente cada uma delas. Vários dos melhores momentos da temporada estão em pequenos conflitos esporádicos entre as gangues gerados pelo personagem, que sempre geram alguma consequência futura para um outro momento de trama.
Já no núcleo destinado ao Bruce Wayne criança, a série encontra uma maior dificuldade de conseguir conectivos de entrelace entre a proposta contínua/procedural. Começa até bem, com a ideia de o menino ficar obcecado em descobrir o paradeiro de quem matou seus pais, sendo uma ponte plausível ao estigma da sua personalidade detetivesca, além de começar a partir dali a estabelecer o vínculo com protagonista, Gordon. No entanto, essa parcela da trama é parcialmente congelada, porque pertence a uma conspiração muito maior do que o jovem personagem conseguiria resolver, levando a uma continuidade de enredo com a mesma perspectiva conclusiva de futuro distante, no caso, os escândalos de corrupção envolvendo as empresas Wayne.
Nessas horas, Gotham encontra seus momentos de enrolação, que seriam bem mais honestos se fossem assumidos como algo exclusivamente referencial, pois é legal acompanhar o mirim interagindo com Alfred Pennyworth (Sean Pertwee) ou a pequena Mulher-Gato (Camren Bicondova), em subtramas assumidamente episódicas envoltas ou pelo passado do mordomo ou num mini romance de atritos entre as versões mini dos personagens. Algo que acontece na origem do Charada, aqui, ainda como Edward Nigma (Cory Michael), um forense do departamento de polícia que começa ali tímido ajudando a dupla de detetives em vários casos pela sua inteligência e aos poucos vai ganhando espaço para ser desenvolvido em isolado da trama principal, somente como mote de vermos o início da transformação de seu alter ego vilanesco e funciona bem.
Mas se o lado pessoal de exploração dos personagens é bastante promiscuo nesse lado do Wayne ou do Nigma, o mesmo não pode ser dito para Gordon, que apesar de bem desenvolvido numa caracterização direta ao ponto por parte de seu intérprete Ben McKenzie – a título de curiosidade, foi dublador do Batman no filme animado Batman: Ano Um – , não apresenta vínculos emotivos pessoais devidamente relevantes a trama que ele conduz. Estamos falando principalmente dos seus interesses românticos, que até ganham suas próprias narrativas, mas ou são completamente ignoradas em determinado momento como foi o caso da inicial relação de Barbara (Erin Richards) com a policial Renee Montoya (Victoria Cartagena), ou são extremamente secundárias, como a presença da Dr. Leslie Thompkins (Morena Baccarin), ou são completamente absurdas, como a investida final de tentar transformar Barbara de uma hora pra outra, em uma espécie de psicopata por influência, remetendo aquela construção de vilões que podem ou não serem derivados dos quadrinhos – seria Barbará a possível Arlequina desse universo? Descobriremos.
De modo geral, a primeira temporada de Gotham, entre altos e baixos que qualquer série de 22 episódios apresenta, é bem divertida. Apresenta uma atmosfera cartunesca mesclada do gótico de Tim Burton, com o pastelão caricato de Joel Schumacher e um pouco do realismo violento de Christopher Nolan na sua concepção imagética, além de traços não tão científicos das clássicas séries investigativas policiais do início dos anos 90 até meados dos anos 2000 no corpo e cenários do riquíssimo universo do morcegão. Enquanto dramaturgia, tem suas limitações, mas em grande parte do tempo, oferece um entretenimento eficiente para leigos do material fonte e oferece um sabor a mais para quem já consome o conteúdo e é aberto a experimentar novas releituras do que via nas páginas de gibi.
Gotham – 1ª Temporada | EUA, 2014 – 2015
Criação: Bruno Heller
Diretores: Danny Cannon, Dermott Downs, T.J. Scott, Tim Hunter, Rob Bailey, Paul Edwards, Karen Gaviola, Guy Ferland, Oz Scott, Eagle Egilsson, Wendey Stanzler, John Behring, Nick Copus, Jeffrey Hunt, Nathan Hope, Bill Eagles
Roteiristas: Bruno Heller, John Stephens, Ken Woodruff, Rebecca Perry Cutter, Ben Edlund, Sue Chung, Megan Mostyn-Brown, Danny Cannon, Jordan Harper
Elenco: Ben McKenzie, Donal Logue, Robin Lord Taylor, David Mazouz, Sean Pertwee, Jada Pinkett Smith, Cory Michael, Smith, Zabryna Guevara, Camren Bicondova, Erin Richards, Drew Powell, David Zayas, John Doman, Morena Baccarin, J.W. Cortes, Chelsea Spack, Alex Corrado, Victoria Cartagena, Makenzie Leigh, Andrew Stewart Jones, Richard Kind, Clare Foley, Carol Kane, Dashiell Eaves, Philip Hernandez, Anthony Carrigan, Peter Scolari, Krista Braun, Danny Mastrogiorgio, Nicholas D’Agosto, Dash Mihok, Milo Ventimiglia
Duração: 22 episódios – 43 minutos em média cada episódio