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Crítica | Gon

O Horácio do Velho Testamento.

por Luiz Santiago
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Melhor Publicação para o Público Jovem no Eisner Award de 1998, Gon foi um mangá originalmente publicado em 7 volumes, escrito e desenhado por Masashi Tanaka. O protagonista da obra é o último dinossauro da Terra, que atravessa o planeta inteiro em diferentes estações do ano, convivendo com larga flora, fauna e relevos, gerando as situações conflituosas mais fofas e divertidas possíveis. Por se tratar de um quadrinho mudo, a narrativa aqui não obedece a uma cadência convencional, mesmo para os mangás, e já aí temos o critério que irá afastar leitores que acham que “quadrinho depende de texto“. Vale a pena lembrar que a arte sequencial começou apenas com narrativas imagéticas, havendo adição de falas e contextos em quadros muito tempo depois. A imagem precede a escrita. Por isso que aventuras como esta nos levam para as origens da Nona Arte e nos fazem pausar o ritmo, contemplar e, juntamente com o autor, criar. Nesse ponto, também, reside um outro problema: alguns acreditam que, só porque não tem texto, esse tipo de HQ precisa/deve ser lida com intensa rapidez, o que é um absurdo em tantos níveis que nem vale a pena raciocinar a respeito.

Os primeiros oito capítulos desta saga (correspondendo ao Volume 1 brasileiro) são Gon Come e Dorme; Vai à Caça; Constrói uma Mansão; Voa; Disputa Com um Tubarão Gigante; Luta Contra um Carrapato; Se Enfurece na Floresta; e Vive com os Pinguins. Eles servem para nos apresentar quem é o animalzinho que protagoniza essa fantasia fabular de ação e o que devemos esperar da mistura de gêneros que nem sempre aparece de forma óbvia nas tramas. Ao final de cada capítulo, o autor destaca alguns personagens marcantes (embora nem todos os protagonistas sejam nominalmente desenhados/demonstrados nessas indicações), e os que formam as aventuras de introdução de Gon são esses: salmão vermelho, urso-negro, hiena-malhada, gnu-de-cauda-preta, pica-pau-tridáctilo, coiote, águia-real, lince-euroasiático, tartaruga-gigante, tubarão-touro gigante, búfalo-africano, carrapato, javali-africano, babuíno-amarelo, elefante-da-savana, ouriço-sul-africano, macaco-de-cheiro, tamanduá-mirim, tarântula, jaguatirica, anaconda (sucuri-verde), preguiça-de-bentinho, petrel-grande e foca-de-weddell. É interagindo com toda essa bicharada que percebemos a principal característica de Gon: o egoísmo extremo, causado pela fome insaciável. Ele fará de tudo (contra qualquer animal, vegetal ou mineral) para conseguir comida e conforto e, embora esse traço nunca se perca, a partir do Volume 2 fica mais diluído em aventuras de companheirismo e responsabilidades diante de amigos temporários, filhotes e outros animais em situações de perigo.

Entre o final do primeiro volume e o início do segundo, que conta com os capítulos 9 a 14, a saber, Gon Desce o Grande Rio, Solta Fogo Pelos Olhos, Vai Buscar Cogumelos, Luta Por Seus Irmãos, Se Finge de Tartaruga e Viaja Pelo Deserto, temos alguns quadros que incomodam por conta da cadência de eventos que não parece muito clara ou que condensa uma quantidade de tempo (coisa de alguns minutos ou até segundos, no tempo diegético) que o leitor acaba não entendendo. Algumas ações de Gon, como cabeçadas, pisadas e rabadas, acabam parecendo sem sentido em situações de grande importância. O estilo realista (e belíssimo) do autor não deixa margem para dúvidas, de modo que essas mudanças pouco orgânicas de poses e/ou ações do dinozinho acabam retirando a fluidez de tais cenas porque não conseguimos fingir que não existiram. Isso não quer dizer que existe um sério problema de diagramação ou que falte algo que poderia ser conseguido através de texto. Nada disso. Aponto apenas que, em alguns quadros, no meio de sequências de batalha, perseguição ou fuga, encontramos diferenças sequenciais que saltam aos olhos e geram confusão. E neste segundo bloco, além de cogumelos venenosos, vemos aparecer nas páginas personagens como piranha, baleia, canguru-vermelho, coala, guaxinim, filhote de lobo, tigre-siberiano, quati-de-nariz-branco, lula-gigante, grivet e impala.

A partir do terceiro volume lançado pela NewPOP no Brasil, compreendendo os capítulos 15 a 17: Gon e Seus Filhotes; Viaja Pelas Profundezas da Terra; e O Ninho em Sua Cabeça, temos histórias maiores, menos cômicas e mais líricas. O tom da série muda consideravelmente, porque Gon está definitivamente mais explorador e cada vez mais acompanhado ou relacionado a outros bandos e bichos, como caracal, serval, morcego-nariz-de-porco-de-kitti, isópode terrestre, efemeróptero gigante, salamandra-gigante, hiena-castanha e gafanhoto-migratório, todos fazendo parte das novidades naturais que aparecem para este braços-pequenos faminto. Sinto que o terceiro e o quarto volume da série possuem uma finalização de aventuras levemente decepcionantes, talvez um pouco mais abertas, mais livres de um nó narrativo do tipo “ciclo encerrado”, mexendo com a nossa percepção de compensação. Por outro lado, aparecem aplaudíveis referências visuais em cada novo capítulo ou espaço visitado, com destaque especial para a quase “adaptação” de Viagem ao Centro da Terra que me arrancou vários momentos de queixo caído durante a leitura.

Os capítulos 18 a 24 nos dão a impressão de que o autor quis dar a Gon uma representação de “força maior“, para além do bichinho extremamente forte e briguento que conhecemos. Talvez ele esteja simbolizando um tipo de “espírito da natureza“, a “força do caos” ou o Homo Sapiens. O fato é que Gon realiza inúmeras mudanças nos nichos ecológicos por onde passa e tem atitudes que afetam ecossistemas inteiros. Como na fase final os capítulos recebem uma continuidade que antes não existia, o leitor aproveita essas viagens de maneira diferente e percebe as piscadelas do autor no decorrer das seguintes situações: Gon e Seus Amigos Feridos; Escala Uma Montanha; E o Grande Elefante Sábio; Cria um Passarinho; Se Diverte Com uma Família de Orangotangos; Vai Treinar; E Seus Amigos Vão Colher Mel no Bosque. O humor, agora mais maduro, muda bastante o tom geral da narrativa e, junto ao encanto que nos proporcionou desde o início, consegue cravar o carimbo de “leitura obrigatória” para a série, convocando qualquer um que aprecia a arte narrativa, a fantasia fabular às vezes sem sentido e um milhão de sentimentos e possibilidades de reflexão pelo meio do caminho. Gon é simplesmente necessário e inesquecível!

Em tempo: os animais destacados pelo autor no último volume da saga de Gon são os seguintes: lobo, puma, castor, marta, íbex, leopardo-das-neves, hiena-malhada, macaco-de-cauda-vermelha, pardela-de-cauda-curta, varano-malaio, orangotango, gibão-de-mãos-brancas, raposa-voadora, cacatua-branca, urso-malaio, lóris-lento-malaio, pangolim-malaio, porco-espinho-malaio, tarsius mawmag, muntíaco, urso-pardo, leão, castor-americano, águia-real, tubarão-branco, pica-bois-de-bico-amarelo, pinguim-de-adélia, quatipuruzinho-bigodeiro, boto-cor-de-rosa, dingo, lobo-da-tundra-asiática, cogumelo imperador, tartaruga-marinha, albatroz-gigante, avestruz, guepardo, tecelão-dourado-africano, águia-careca, elefante, albatroz-de-steller, orangotango e abelha.

Gon (ゴン) — Japão, 1991 – 2002
Publicação original: Weekly Morning (em 7 volumes)
Edição lida para esta crítica: NewPOP, em 4 volumes (2022 – 2023)
Roteiro: Masashi Tanaka
Arte: Masashi Tanaka
1128 páginas (por volume: 288 / 272 / 248 / 320)

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