Lá pela metade de Golden Kamuy, filme que me atraiu pelo visual e pela menção à Guerra Russo-Japonesa do começo do século XX, assunto muito raramente abordado no audiovisual, tive que excepcionalmente parar de assisti-lo em razão de um imprevisto, já sempre faço todos os esforços para assistir longas em uma sentada só, sem sequer direito à pausas para banheiro. Entre essa interrupção e o retorno ao filme dirigido por Shigeaki Kubo, fui tomado pela curiosidade e resolvi pesquisar se a base da história e acabei descobrindo que se trata de uma adaptação de um mangá daqueles gigantes, de mais de 30 tankōbon, de Satoru Noda, que já ganhara uma versão em série animada que, até onde pude apurar, ainda não chegou ao fim.
Essa informação é relevante, pois, mesmo apreciando a estética do longa, não consegui deixar de ficar incomodado com algumas de suas características. Para começo de conversa, apesar de ser claramente uma produção de qualidade e cuidadosa com figurinos, maquiagem e cenários tanto construídos quanto naturais, Golden Kamuy mostrava-se muito “limpa e arrumada”, ou seja, com uma abordagem que não convencia como universo vivido. Basta, para isso, reparar nos figurinos dos protagonistas, o veterano de guerra Saichi Sugimoto, conhecido como Sugimoto, o Imortal (Kento Yamazaki) por ter sobrevivido a ferimentos e situações impossíveis durante o conflito com a Rússia e a jovem caçadora Asirpa (Anna Yamada), do povo Ainu, protegida por um enorme lobo branco. Suas roupas sempre parecem que acabaram de sair da máquina de lavar e secar, sendo imediatamente passadas e dobradas. Chega a ser engraçado.
Outra característica que me incomodava antes de saber a fonte primígena do longa, era o didatismo extremo que, por vezes, parece um guia turístico e cultural sobre a ilha de Hokkaido em geral e sobre os Ainu em particular, com explicações artificiais e deslocadas sobre estratégias de caça, alimentação, vida em comunidade e mais um sem-número de outras características. E isso sem contar que a introdução de personagens se dá por meio de congelamentos de cena em que seus nomes, cargos e funções aparecem por escrito. É uma linguagem anti-cinematográfica até, que é o equivalente a pegar na mão do espectador para ajudá-lo a atravessar a rua ou a desbravar um filme que não é nada complicado para além da premissa um tanto quanto surreal (mas boa) e a quantidade de personagens que vão sendo apresentados ao longo de toda a duração, inclusive na última cena pós créditos.
Todavia, o fato de Golden Kamuy vir de um mangá e de a produção ter elegido usar a linguagem bem característica dos quadrinhos japoneses no filme, explica e suaviza os problemas que detectei como os mais incômodos. O espaço pouco vivido reflete – ou deve refletir, pois não li o mangá, ainda que tenha ficado curioso – a natural “limpeza” dos traços do artista e mantém os personagens e a ambientação levemente caricatos. O didatismo, igualmente, parece vir diretamente dos quadrinhos, pois especialmente mangás são em boa parte prolíficos em explicações e repetições dessas explicações sempre que um novo capítulo começa, algo que não é exclusivo das HQs japonesas, claro, mas que é mais sensível nelas, pelo menos em minha experiência. E não é que ser uma adaptação de mangá cure por completo os problemas do longa, que fique bem claro, mas, como fica evidente que o roteiro de Tsutomu Kuroiwa e a direção de Shigeaki Kubo tentaram fazer uma transposição das páginas diretamente para o audiovisual, há que se reconhecer o esforço que, admito sem reservas, resulta em um longa-metragem muito interessante, dinâmico e cativante, especialmente em razão da presença magnética de Anna Yamada como Asirpa.
Sei que não falei da história em si, mas é que explicá-la é cair na armadilha do filme, ou seja, estender-se em detalhes que não exatamente contribuem para o todo. Mas, apenas para não deixar o leitor perdido, trata-se, em essência, de uma caça ao tesouro, mais exatamente ao ouro pertencente aos Ainu que fora roubado por um homem misterioso que o escondera antes de ser preso e que tatuou trechos do mapa no corpo de 24 prisioneiros que, mais tarde, fugiram. Ou seja, para achar o ouro, é necessário localizar cada um dos fugitivos. O problema é que, ao que tudo indica, esse é o segredo menos secreto de Hokkaido e Sugimoto e Asirpa são apenas dois de dezenas de outros que estão correndo atrás da fortuna. É, sem dúvida alguma, uma premissa engenhosa, repleta de partes móveis e que, logo de cara, pelo estilo do filme em si, que se refestela com longas sequências de ação com uso generoso – e por vezes cansativo – de câmera lenta, algo que fica evidente já no prelúdio durante a guerra, não tinha a menor chance de ser desenvolvida e encerrada em apenas um longa. E aí vem meu terceiro incômodo: se 129 minutos não são suficientes para contar uma história dessas nesse estilo, talvez o ideal fosse uma série, pois interromper um filme como se fosse um episódio é outra escolha anti-cinematográfica que me desagrada tremendamente.
No entanto, por incrível que pareça, Golden Kamuy, apesar de seus vários problemas óbvios, encanta pela estética, pela dinâmica entre os protagonistas e pelas variadas e cada vez mais ousadas sequências de ação que abusam da caricatura de artes marciais, mas sem descambar para o pastelão ou pastiche. Percebe-se o cuidado e dedicação da equipe de produção em cada detalhe do filme, inclusive com o uso de um ótimo CGI, inclusive para o lobo branco gigante que protege Asirpa (e que compartilha tempo de tela com uma versão animatrônica dele, vale destacar). É um dos filmes mais “quadrinhescos” que me lembro ter assistindo recentemente e a mistura de pano de fundo histórico com uma localização espacial pouco explorada em obras audiovisuais, além de uma história tão bizarra e absurda que é imediatamente interessante, com direito a vilões extremamente vilanescos, personagens que são essencialmente bobos da corte e, claro, os invencíveis protagonistas, acaba resultando em uma obra irresistível, ainda que eu me sinta “enganado” por ela acabar abruptamente. Que venha a parte dois!
Golden Kamuy (Japão – 19 de maio de 2024)
Direção: Shigeaki Kubo
Roteiro: Tsutomu Kuroiwa (baseado em mangá de Satoru Noda)
Elenco: Kento Yamazaki, Anna Yamada, Gordon Maeda, Yūma Yamoto, Asuka Kudo, Shuntarō Yanagi, Yūki Izumisawa, Mitsuki Takahata, Ryohei Otani, Makita Sports, Yuno Nagao, Debo Akibe, Hisako Ōkata, Katsuya, Katsumi Kiba, Arata Iura, Hiroshi Tamaki, Hiroshi Tachi
Duração: 129 min.