Em minha crítica de Golden Kamuy, longa de 2024 que iniciou a adaptação live-action do longevo mangá homônimo de Satoru Noda, afirmei que ele se parecia demais com uma série, inclusive chegando a um encerramento típico de final de temporada, que interrompe a ação sem uma efetiva conclusão. Eis que, menos de um ano depois de sua estreia no Netflix, a continuação do filme inusitadamente chega ao serviço de streaming como uma série de nove episódios, batizada de Golden Kamuy 2: A Caça aos Prisioneiros em Hokkaido, com o mesmo elenco, diretor e roteirista, além de valores de produção idênticos, com mais espaço para lidar com uma narrativa que, ao tentar se aproximar o máximo possível do mangá, ganha aquele sabor de algo interminável que, não tenho dúvida, pode ser um problema a longo prazo, mas que, aqui, continua funcionando bem.
O ex-soldado japonês Sugimoto, o Imortal (Kento Yamazaki) e sua companheira Asirpa (Anna Yamada), do povo Ainu, original de Hokkaido, continuam sua jornada pela ilha ao norte do arquipélago nipônico, no começo do século XX, em busca dos remanescentes dos 24 prisioneiros com tatuagens com pedaços de um mapa que leva a um tesouro, o ouro roubado do povo de Asirpa e que, claro, diversos outros grupos almejam obter. Ao lado de Yoshitake Shiraishi (Yūma Yamoto), um desses prisioneiros que se autodenomina Rei das Fugas e que se dispõe à ajudar a dupla, e de outros que vão aos poucos aliando-se a eles, a temporada é uma constante e literal jornada pelas mais variadas cidades e vilarejos de Hokkaido atrás dos tatuados e ao mesmo tempo em fuga dos soldados da 7ª Divisão comandados por Tokushirō Tsurumi (Hiroshi Tamaki) e de um grupo menor, de aliança maleável, liderado pelo ancião Toshizō Hijikata (Hiroshi Tachi), com um desfile de personagens bizarros sendo apresentados ao longo do caminho.
Os roteiros de Tsutomu Kuroiwa tentam fazer a complexa mágica de se manter fiel ao mangá tanto em sua estrutura narrativa que tem drama, humor, sátira e muita violência, como com os fatos históricos que emprestam uma ótima camada de “realismo em segundo plano”, por assim dizer, em que tudo o que vemos é completamente fictício, claro, mas com um gostinho de pesquisa com os pés fincados em uma realidade pouco explorada no audiovisual, inclusive no japonês, e que dá destaque ao povo Ainu, suas tradições e talvez principalmente hábito alimentares – a comida é da essência tanto do filme quanto da série -, além do lado histórico que fala das consequências da Guerra Russo-Japonesa e do crescimento da região durante o final da Era Meiji. E, ao tentar equilibrar tudo, Kuroiwa acaba criando uma obra que é tonalmente enlouquecida dada a variedade de situações que os protagonistas precisam lidar, seja uma singela caçada ao lobo branco que serve de anjo da guarda para Asirpa ou um taxidermista insano que faria Jame “Buffalo Bill” Gumb, o serial killer de O Silêncio dos Inocentes para quem não lembra, parecer um educado costureiro de madame, e isso pode levar a um certo grau (plenamente justificado) de estranhamento por parte do espectador.
E esse estranhamento é também ecoado por algumas escolhas da produção que são definitivamente questionáveis, mas que, muito sinceramente, funcionaram bem para mim no espírito geral da obra, até porque eu não costumo exigir demais de obras audiovisuais nesse quesito. Falo mais particularmente da forma como um bom CGI que amplifica animatrônicos por vezes é substituído por tosquíssimos animais que muito claramente são dublês fantasiados com figurinos mal feito de animais, notadamente de ursos. É quase como se o diretor Shigeaki Kubo tivesse levantado as mãos para o alto e se rendido à galhofa diante da intransigência dos donos do dinheiro em gastar um pouco mais para fazer algo que mantivesse o mesmo tipo de visual, partindo para empregar efeitos de maneira desapegada, na medida do necessário mesmo que isso acabe cobrando um preço do espectador. Mas convenhamos que esses momentos são poucos e esparsos e que o restante da produção se segura muito bem nos quesitos figurinos, maquiagem e direção de arte, mesmo que o problema que detectei no longa continue presente na série, ou seja, o quanto tudo é muito “limpinho” e “arrumadinho”, inevitavelmente deixando aquela impressão de artificialidade, sem que seja efetivamente possível ter aquela sensação de “espaço vivido”.
A narrativa inicialmente parece que vai meramente caminhar pelo “prisioneiro tatuado da semana”, mas os roteiros conseguem criar uma cadência muito variada que não se furta, por exemplo, de lidar com momentos verdadeiramente dramáticos, como é o flashback alongado que conta a história da irmã de Genjirō Tanigaki (Ryohei Otani) que, em meio a tantas sequência tresloucadas, algumas que parecem tiradas de desenhos animados (todo o episódio no hotel cheio de armadilhas é sensacional), consegue ser genuinamente comovente. A linguagem de quadrinhos também é mantida dentro da medida do possível, com muita atuação histérica e exagerada, além de personagens que são muito mais caricaturas do que qualquer outra coisa, com direito até mesmo a diversos momentos em que cada lado na “competição por tatuagens” fazem o levantamento de quantas têm de forma que o espectador não fique perdido.
Golden Kamuy 2 é uma série sem freios que só não chamo de trem desgovernado em direção a uma parede de concreto armado porque há método no que a produção faz e porque tudo é tão sortido e diferente que creio que não há um momento sequer em que o espectador olha para a tela e diz que o que está vendo é monótono ou repetitivo. Claro que a minutagem é enorme para uma história em tese muito básica, e isso pode levar a um cansaço natural em temporadas futuras – cansaço até de novidades, vale dizer -, mas, por enquanto, Shigeaki Kubo e Tsutomu Kuroiwa tem conseguido andar no fio da navalha entre o exagero absurdista e o realismo contido. Sem dúvida estou curioso para ver aonde isso vai dar.
Golden Kamuy 2: A Caça aos Prisioneiros em Hokkaido (Gōruden Kamui: Hokkaido Shisei Shujin Soudatsuhen // ゴールデンカムイ 北海道刺青囚人争奪編 – Japão, 06 de fevereiro de 2025)
Direção: Shigeaki Kubo
Roteiro: Tsutomu Kuroiwa (baseado em mangá de Satoru Noda)
Elenco: Kento Yamazaki, Anna Yamada, Gordon Maeda, Yūma Yamoto, Asuka Kudo, Shuntarō Yanagi, Ryohei Otani, Debo Akibe, Hisako Ōkata, Katsuya, Katsumi Kiba, Kazuki Kitamura, Maryjun Takahashi, Hiroyuki Ikeuchi, Masato Hagiwara, Takahiro Fujimoto, Yuki Furukawa, Kiyohiko Shibukawa, Tomoki Kimura, Takashi Ukaji, Kenjirō Ishimaru, Yu Tokui, Kazuhiro Yamaji, Taishi Nakagawa, Arata Iura, Hiroshi Tamaki, Hiroshi Tachi
Duração: 473 min. (nove episódios)