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Crítica | Golda – A Mulher de uma Nação

Mais maquiagem do que filme.

por Ritter Fan
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Cinebiografias tentam, costumeiramente, responder algumas perguntas, abrir nem que seja uma fresta na janela da vida do biografado e dos eventos que o cercaram. Diferente do que muitos imaginam, porém, não há obrigação alguma com fidelidade absoluta, pois, a não ser que a obra seja um documentário, ela ainda carrega o selo de ficção e permite que a produção trilhe seu próprio caminho, seja na forma como conta a história, sejam nas decisões narrativas tomadas para alcançar o objetivo específico da película. Há latitude na forma de retratação da pessoa ou pessoas e também dos acontecimentos importantes, mas subsiste a necessidade de se marcar um ponto, ou seja, entregar as tais “respostas às perguntas”, perguntas essas que são postas no próprio filme, claro.

E essa é a primeira dificuldade de Golda – A Mulher de uma Nação (esse subtítulo nacional não faz nenhum sentido), cinebiografia da primeira-ministra israelense Gold Meir que se passa durante e brevemente depois a Guerra do Yom Kippur, ocorrida entre 06 e 25 de outubro de 1973. O recorte é claro e o que interessa, para o longa, são as decisões e a visão da protagonista durante a guerra entre Israel de um lado e Egito e Síria do outro, mas o roteiro de Nicholas Martin não parece saber o que quer dizer em seu segundo roteiro para um longa-metragem e, também, sua segunda biografia, a primeira tendo sido Florence – Quem é Essa Mulher?, de 2016. Seria natural que as perguntas de Martin fossem uma combinação de quem foi Golda Meir e qual foi sua importância com o que foi a Guerra do Yom Kippur e qual foi sua importância, mas ele poderia ter escolhido uma dessas perguntas apenas ou qualquer outra que gravitasse ao redor da personagem histórica e da guerra em questão.

Infelizmente, porém, Golda é um filme que tem apenas uma preocupação: destacar a atuação de Helen Mirren escondida atrás de quilos de maquiagem. E Mirren, de fato, é a única constante aqui, o único real porto seguro, já que a atriz britânica raramente erra em suas performances. A maquiagem, porém, atrapalha. Primeiro, ela não era necessária pela idade de Mirren em comparação com a idade de Meir na época em que o filme se passa, basicamente idênticas. Segundo, se o objetivo era trabalhar um envelhecimento mais acentuado em razão do câncer que a primeira-ministra esconde de seus pares e de seu vício em cigarros, havia outra maneiras de trabalhar o rosto de Mirren mais suavemente, sem precisar colocar uma “máscara de Golda Meir” na atriz. O próprio filme faz isso muito bem com Liev Shreiber como Henry Kissinger e deveria ter feito o mesmo com Mirren, mas a produção deve ter pensado nesse artifício como “diferencial” do longa, o que, de certa forma, deu certo, já que ele concorreu ao Oscar nessa categoria em 2024.

Meu ponto é que a maquiagem esconde Mirren e reduz a latitude de seu trabalho. Sim, ela consegue mesmo assim viver bem uma alma torturada e repleta de dúvidas em âmbito pessoal e, ao mesmo tempo, uma mulher forte e decisiva para consumo externo, mas, inevitavelmente, Mirren perde espaço, por assim, dizer, para o látex pintado e o penteado com fios desgrenhados que são onipresentes na obra ao lado, claro, dos cigarros que a personagem fuma mesmo dentro do hospital, prestes a ser bombardeada por radiação. Há até uma tentativa do diretor israelense Guy Nattiv em usar a fumaça do cigarro de maneira “artística”, mas tudo o que ele consegue é inadvertidamente enterrar Mirren em mais outra camada artificial que impede que sua atuação realmente desabroche.

Mas e a história, será que ela funciona? Diria que a resposta dependerá do quanto o espectador conhece a história de Golda Meir e da Guerra do Yom Kippur. A primeira-ministra já está no fim de sua vida quando o longa começa, ou seja, já carrega uma gigantesca bagagem que data do começo do século XX na Ucrânia, passando pela formação do estado de Israel e chegando à tentativa do Egito e da Síria de fazer com que Israel devolvesse a Península do Sinai, tomada na Guerra dos Seis Dias, em 1967 (e não achem que foi essa agressão que levou à agressão retratada no filme, pois a coisa é muito mais complexa do que isso). Se o ambiente geopolítico da época estiver claro na mente do espectador, o filme até consegue entregar um pequeno recorte que acompanha Golda Meir da inevitável eclosão da guerra até o armistício. A palavra chave, porém, é mesmo “pequeno”, pois tudo é acompanhado a partir do ponto de vista da primeira-ministra em seu gabinete de guerra, com o conflito sendo apenas “ouvido” via transmissões de rádio aqui e ali. A abordagem intimista de um momento tão decisivo para Meir e para Israel é uma escolha obviamente ditada por orçamento, mas também pelo objetivo de olhar a guerra a partir da protagonista, com suas dúvidas, seu desespero e, claro, sua luta diária contra uma doença que a consome por dentro.

O problema é que, no papel, essa estrutura é muito melhor do que o que acabou sendo colocada em tela. Nattiv comanda seu filme usando os eventos da guerra para ditar o ritmo narrativo e para fazer com que Meir reaja a eles, mas o problema é que há uma desconexão clara e tudo o que acontece nas linhas de frente parece acontecer apesar de Golda Meir e não em razão de suas decisões. E eu não estou aqui para disputar se foi assim ou não que aconteceu, mas apenas para pontuar que, sob o ponto de vista narrativo, o filme fica muito enfraquecido com eventos paralelos que nunca verdadeiramente se entremeiam. E as pontuações supostamente artísticas de Nattiv não ajudam em nada nesse aspecto. Já falei da fumaça do cigarro usada como momentos de transição e, também, de contemplação, mas há outras sequências, como o caminho que Meir toma para chegar para sua radioterapia que a faz passar pelo necrotério do hospital que, na medida em que a guerra progride, fica mais cheio, além do foco em sua taquígrafa que tem um filho na guerra são apelos deslocados para um sentimentalismo barato e artificial.

A guerra não vista, no máximo ouvida aqui e ali, emociona menos do que assistir a alguém jogando um videogame. Tudo é falado, nada é mostrado, o que não é um problema se o roteiro soubesse trabalhar diálogos que não parecessem ao mesmo tempo didáticos e resumos “fáceis” do que está acontecendo lá fora, na base do “estamos perdendo” e “estamos ganhando”. E, pior do que isso, o impacto da guerra para a história de Israel e dos países árabes ao redor ganha algo como 10 minutos de narrativa que parecem não decorrer do conflito imediatamente anterior que, por sua vez, curiosamente, também parece “solto no ar” e não a culminação – até aquele ponto – de animosidades no Oriente Médio. O fato de o filme ser enquadrado pela investigação dos atos de Golda Meir durante a guerra por uma espécie de comissão parlamentar não melhor a história, pois não há peso justamente nesses atos. Aliás, que atos? Ou seja, mais uma vez a produção não consegue fazer as perguntas que deveria tentar responder.

Ainda bem que Mirren, apesar dos pesares, segura o filme nas costas e que a cena em que ela contracena com Shcreiber na cozinha da casa de Meir merece todos os elogios possíveis por condensar muito bem a relação dos EUA com Israel em geral e, mais especificamente, de Kissinger como um mestre manipulador e de Meir que aqui e só aqui faz por merecer seu apelido de Dama de Ferro, ecoando o de Margaret Thatcher. Esses poucos minutos são os únicos reais minutos de Golda – A Mulher de uma Nação em que perguntas relevantes são feitas e respostas efetivas são dadas. De resto, infelizmente, ficou faltando mais de Golda Meir e da Guerra do Yom Kippur em um filme sobre Golda Meir durante a Guerra do Yom Kippur.

Golda – A Mulher de uma Nação (Golda – Reino Unido/EUA, 2023)
Direção: Guy Nattiv
Roteiro: Nicholas Martin
Elenco: Helen Mirren, Camille Cottin, Rami Heuberger, Rotem Keinan, Emma Davies, Lior Ashkenazi, Dominic Mafham, Dvir Benedek, Ed Stoppard, Ohad Knoller, Liev Schreiber, Jaime Ray Newman
Duração: 100 min.

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