Quarto filme do MonsterVerse americano, até então composto por Godzilla (2014), Kong: A Ilha da Caveira (2017) e o fantástico Godzilla II: Rei dos Monstros (2019), este Godzilla vs. Kong tem pelo menos um mérito histórico interessante, que é o de protagonizar mais uma grande batalha onde espectadores escolhem um lado, criam as mais diversas teorias e intrigas e ajudam a vender o filme, aumentando a lista de massa com grandes produções de cinema que engajaram milhões de indivíduos ao redor do mundo discutindo de modo bastante engajado o seu conteúdo. Há alguns anos tivemos outro grande exemplo disso (Capitão América: Guerra Civil, em 2016), mas no presente caso a discussão tinha um peso mítico, colossal. Afinal, não é todo dia que temos um projeto desse tamanho botando dois bichões desse tamanho para entrar na porrada.
A direção do longa é de Adam Wingard, que em sua filmografia tem coisas interessantes como O Hóspede (2014) e Você é o Próximo (2011), e também um grande horror chamado Death Note (2017). O que podemos tirar de seus exercícios pregressos atrás das câmeras é a capacidade de criar cenas de grande impacto visual em um contexto de enfrentamento, o que é uma habilidade perfeita para aplicar a um kaiju. E sejamos sinceros, o diretor consegue pelo menos três momentos de porradaria intensa e maravilhosa de se ver na tela (não sei vocês, mas eu lamentei muito em não poder ver esse filme no cinema. Os grandes closes e os momentos de enfrentamento entre o macaco e o lagarto foram dirigidos justamente para impactarem o público na tela gigante), fazendo o único serviço que deve ser feito em um filme de monstro: deixar que o filme realmente seja dos monstros. Para nossa infelicidade, porém, isso não acontece aqui.
“E qual será a reclamação dessa vez?”, algum espectador muito animadinho com o filme irá perguntar-se. Ué, pessoal, vejam o porte do filme sobre o qual estamos falando! A reclamação não poderia ser outra além da reclamação de sempre: o maldito núcleo humano, e dessa vez, acrescido de um roteiro que se julga tão inteligente, tão inovador e tão fora da caixa, que inventou demais e acabou tirando tempo de tela da única coisa que realmente importava. Em vez de estabelecer o conflito num espaço já conhecido e que não precisava de nenhum tipo de invenção absurda para funcionar na tela (vamos falar sobre o salto gigantesco de tecnologia do lado da Apex Cybernetics versus o nulo salto de tecnologia da humanidade como um todo? Seria Apex uma Neo-Wakanda?), o texto nos leva para o centro da Terra, brincando com a teoria da Terra oca, fazendo pantinhos narrativos com Jules Verne e tentando escorar-se no visual impactante que esse espaço geográfico nos traz. Aliado ao baita trabalho de desenho de som que o filme tem, e a uma fotografia com ótimos momentos (até o neon, pelo qual normalmente tenho maior resistência, acabou me agrando aqui) a experiência de deslocamento e tudo o mais criado por aquele lugar são coisas realmente marcantes. Mas isso não entra na unidade narrativa do filme, não é orgânico à obra, parece cenas trazidas de um filme futuro e que foram editadas por acidente em Godzilla vs. Kong!
A pergunta, porém, ressoa desde os confins da Skull Island: se Godzilla e Kong já tinham feito as pazes, não havia sentido em levar o macacão de volta para o centro da Terra, havia? Ah, sim, isso valida a própria criação da Terra para o filme, mas o nível de absurdos que se encadeiam a partir daí é tão grande, que tento encontrar um caminho mais ou menos coerente para alocar a intenção dos roteiristas; só que não consigo. Vamos lá. Bichos grandões brigando. Só isso era o que importava. Tudo o que o texto precisava era criar o tatame para a tal briga ocorresse. Mas não, “vamos inventar umas coisas que não servem para absolutamente nada no filme, mas que vão impressionar visualmente os espectadores e estará tudo bem”, eles disseram. Haja paciência…
Todo esse direcionamento tecnológico acabou permitindo que o vilão da história fosse criado, e então o núcleo humano é quebrado, dando lugar aos “indivíduos ao lado dos kaiju bonzinhos” e também aos “indivíduos ao lado da Corporação malvada e criadora do Mechagodzilla” (fiquei balançado em relação ao design dele, mas não odiei. E vocês?). Notem a quantidade de adições dramáticas no decorrer de um filme de porrada! Como a maioria desses personagens humanos não servem para nada verdadeiramente importante para a história (qual a utilidade do professor vivido por Alexander Skarsgård mesmo?), a gente fica com uma trama de potencial enorme sendo praticamente desprezada (os kaiju fazendo kaijuzisses) e outra da mais profunda chatice, intercalada por alguns segundos cômicos que, de tão isolados e pelo fato de raramente funcionarem, acabam se tornando constrangedores. O mesmo vale para os laços emotivos. A fofíssima Jia (Kaylee Hottle) parece ser a única com o mínimo de coerência nesse ponto, porque sua capacidade de comunicação reforça a inteligência de Kong e, pela dinâmica de “bela e fera“, termina por nos impressionar e conquistar. Mas nem isso os roteiristas tiveram a capacidade de costurar fluidamente ao filme, parecendo mais um encaixe conveniente do que uma parte importante para a construção de dois personagens.
A questão é que Godzilla vs. Kong, mesmo com todos os seus problemas de construção, vale a pena pelo mínimo que investe nas batalhas entre os monstros. Vá lá que o anticlímax criminoso frente à derrota do Mecha faz a gente questionar os poucos elogios que temos à obra, mas pensando na película como um todo, ficamos com um bom entretenimento, no fim das contas. Mais uma vez, um filme de bichões salvo pelo pouco que traz de coisas que deveria ter em abundância. E eu achando que seguiriam sem pestanejar os passos de Godzilla 2. Pensei que não ia ser feito de trouxa; fui feito trouxa.
Godzilla vs. Kong (EUA, Austrália, Canadá, Índia, 2021)
Direção: Adam Wingard
Roteiro: Eric Pearson, Max Borenstein
Elenco: Alexander Skarsgård, Millie Bobby Brown, Rebecca Hall, Brian Tyree Henry, Shun Oguri, Eiza González, Julian Dennison, Lance Reddick, Kyle Chandler, Demián Bichir, Kaylee Hottle, Hakeem Kae-Kazim, Ronny Chieng, John Pirruccello, Chris Chalk
Duração: 113 min.