É bastante perigosa a receita utilizada pela Toho em Godzilla vs. King Ghidorah (aqui no Brasil também conhecido como Godzilla Contra o Monstro do Mal), envolvendo viagem no tempo e uma proposta diferente para a origem de King Ghidorah. Surpreendentemente, porém, essa receita dá certo a maior parte do tempo, desandando apenas nos vinte minutos finais da projeção. Aqui temos um Godzilla em estado de dormência, recuperando-se de sua contaminação, na luta contra Biollante, pelas bactérias que lhe cortavam a energia nuclear. É um início de filme enigmático na medida certa, com uma excelente montagem — que estranhamente perde a mão do meio da projeção para frente — e com um núcleo humano que, em pelo menos metade do enredo, funciona de forma surpreendente.
Dá para se enganar com um filme assim. Em sua apresentação temos um preparo cuidadoso do roteiro e uma direção inteligente, cheia de piscadelas para o público e de referências para o legado do Rei dos Monstros, com destaque todo especial para os testes atômicos entre o final da 2ª Guerra Mundial e o início da Guerra Fria. Sabemos muito bem que esse tipo de abordagem dá certo porque tem a capacidade de direcionar coerentemente o núcleo humano para trabalhar em torno de Godzilla, ou seja, mantém a roda girando a serviço do kaiju e traz funções dinâmicas e o tempo inteiro renováveis para os humanos. Neste caso, o drama se reparte em dois caminhos, trazendo um mistério do ano 2204 para 1992. Continua-se, então, a jornada através do tempo, reescrevendo a história do Japão e remodelando os acontecimentos em Lagos (uma ilha desabitada nas Ilhas Marshall), evitando que o então “dinossauro que sobreviveu à extinção” se metamorfoseasse no monstruoso ser atômico que ameaçaria a paz.
Uma racionalização excessiva desse roteiro é perda de tempo. Sob as diretrizes estabelecidas pelos viajantes do tempo, o que se desenrola aqui é completamente viável. Embora possa parecer forçado numa visão fria, ao considerarmos as justificativas apresentadas pelo próprio filme, sua proposta e sua harmonia se justificam no texto. À época de seu lançamento, o filme foi criticado por trazer uma origem manipulada para Ghidorah, uma mutação advinda dos testes atômicos na Ilha de Lagos. Originalmente eram três fofíssimos Dorats (animais de estimação geneticamente modificados, uma fusão sintética entre morcego e gato) que acabaram se fundindo e formando o desafiador inimigo de Godzilla. Sua presença aqui faz parte do plano de um grupo do século 23 para barrar o poderio econômico do Japão. Digam o que disserem, a ideia é muito boa e grande parte de sua execução é, no mínimo, interessante.
O filme passa a perder qualidade quando os alinhamos dos kaijus viram uma festa, ora sendo mocinhos, ora sendo vilões. Em tese, isso é bom para criar expectativa e aumentar o tempo de filme. Na prática, faz com que o núcleo humano perca aquilo que tinha de melhor e se torne apenas reativo às ações dos kaijus, ou seja, aquilo que já conhecemos das ações humanas sem graça nos filmes de Godzilla. Para variar, há um componente romântico que se sobressai repentinamente, e uma virada de chave na montagem, que parte de uma aplaudível sequência de escolhas para encadeamentos vergonhosos após a chegada do Ghidorah com armadura, vindo do futuro. Embora tenha alcançado um resultado superior à média, o desfecho do filme é notadamente inferior ao seu início. Devo, porém, aplaudir a exibição de Godzilla voltando à vida, nos créditos finais, ressaltando o poder do monstro que, neste ponto da Era Heisei, torna-se — de novo! — uma mortal ameaça ao Japão.
Godzilla vs. King Ghidorah (ゴジラVSキングギドラ / Gojira vs. Kingu Gidorâ) — Japão, 1991
Direção: Kazuki Ômori, Koji Hashimoto
Roteiro: Kazuki Ômori
Elenco: Kôsuke Toyohara, Anna Nakagawa, Megumi Odaka, Katsuhiko Sasaki, Akiji Kobayashi, Tokuma Nishioka, Yoshio Tsuchiya, Chuck Wilson, Richard Berger, Robert Scott Field, Kenji Sahara, Kiwako Harada, Kôichi Ueda, Sô Yamamura, Yasunori Yuge, Kent Gilbert, Daniel Kahl, Kenpachirô Satsuma
Duração: 100 min.