Tanto Shin Godzilla (2016) quanto este Godzilla Minus One (2023) conseguiram sagrar-se como as melhores e mais impressionantes entradas na série do icônico kaiju, não apenas na atual Era Reiwa, mas em toda a sua jornada cinematográfica. E mais impressionante ainda é o fato de que esses dois filmes não apenas retomaram um estilo único de se narrar uma aventura de monstro gigante, revolucionando ingredientes da Era Showa (especificamente do Godzilla de 1954), mas fazendo algo que rarissimamente encontramos em obras do gênero: entregaram-nos um núcleo humano extremamente bem construído, com o qual o espectador se importa. E isso só acontece de verdade porque esse núcleo nunca está afastado da interferência do titã em cena (ou seja, tudo acaba voltando-se para o lagartão). A opção por experimentar novas abordagens fez com que a Toho seguisse linhas dramáticas com olhares diferentes nos dois filmes. No longa de 2016, o ponto de vista é a ação de combate vinda do governo. Aqui em Minus One, tudo está centrado na população civil e, no máximo, em alguns militares.
O diretor e roteirista Takashi Yamazaki realiza um filme de guerra permanente, ancorado em duas frentes de batalha (pela vida e contra o destruidor) e em dois principais sentimentos de massa, um político-social e outro filosoficamente humano. Na alma do roteiro, ferve a discussão cinquentista sobre o horror que os Estados Unidos fez descer sobre o Japão, sobre o estado do país do meio para o final de 1945, sobre as consequências da guerra atômica e tudo o que isso trouxe em seu bojo. Não há necessidade, aqui, de uma explicação sobre o que é esse monstro, sobre sua origem, sobre o que o fez ficar daquele tamanho e com aquelas características. A única coisa que importa na película é a existência do bicho e o que ele está trazendo para os humanos. A direção sabe trabalhar bem com todas as disposições de grandeza (reforçada por efeitos especiais muito bons), fazendo tomadas de Godzilla em diversos eixos e distâncias, exibindo o medo e a onda de destruição que ele traz para as cidades, conseguindo também fazer com que esse espaço seja compartilhado pelos humanos de forma interessante, em núcleos separados e com o público querendo mais cenas de cada um deles.
A escolha de um ponto de vista civil, o dissecar de um sentimento de derrota e desesperança após uma guerra mundial, o acompanhamento quase acusatório de um progresso nos anos de 1946 e 1947, e o ressurgir de uma maldição na figura de um “deus atômico encarnado” que se enraivece quando atacado e que continua em processo de evolução, são alguns dos motes do roteiro. A postura, o tamanho e a amplitude destrutiva do kaiju mudam bastante da cena inicial em que aparece, para o que veremos depois, no decorrer do filme. Sua capacidade regenerativa, os detalhes de sua pele incrustada de vida marinha e as belíssimas dorsais que se expandem e ficam azuis durante o preparo para o sopro atômico, são parte de um espetáculo aterrador, que inicialmente coloca as pessoas num estágio resignação diante do inevitável, mas que depois cria a base para o enfrentamento. Não se trata, portanto, de uma metáfora. O filme é bastante literal, bastante claro em sua linha de abordagem e nas críticas que faz. A humanidade é o coração do longa, e esse coração, no fim, direciona para um único ser: Godzilla. Uma relação ao mesmo tempo cruel e fascinante.
Em um trabalho de homenagem, como este, o espectador sempre estará diante de situações ou construções conhecidas, importando apenas como a nova geração, como o novo diretor ou a nova equipe de produtores irão transformar essa fonte original em algo próprio de seu tempo; e como a execução dessas ideias se dará. Em Shin Godzilla, o espelho social vinha de uma polêmica situação geopolítica do Japão e do acidente nuclear de Fukushima, acontecido cinco anos antes. Já Minus One encapsula todos os impasses sociais num mundo que está em transformação e impulsiona a sociedade nipônica a olhar para si mesma, para sua baixa taxa de natalidade, para as disputas perdidas com outros mercados e para os constantes acidentes naturais que atingem o país. No cotidiano, isso se mostra nos arranjos pouco convencionais das famílias e da culpa geracional ou de honra que atravanca a vida de muita gente. Se Godzilla serve como um cimento social (unindo pessoas em prol de algo e deixando outros milhares na expectativa de que essa união dê certo — e com a sensação de que “o governo não faz nada para ajudar“, o que é uma diferença grande, comparada à abordagem dos outros filmes), sua superação serve como um indicativo de que o “inimigo doméstico” (o pior de todos os inimigos), foi embora. A vida definitivamente pode continuar. Até que venha outra Era de combate.
A cena final, assim como a de Shin, dá uma piscadela para uma possível continuação da saga (fora das telas), e encerra o filme reafirmando uma linha de diálogo sobre a permanência de Godzilla na sociedade japonesa, sem perdão, em constante situação de caça e caçador. Minus One é um filme sobre dores de guerra, culpa, progresso interrompido e destruição em larga escala por forças incontroláveis. O fato de utilizar todos os elementos dos anos 1950/1960 a seu favor e criar uma aventura que nos mantém interessados o tempo inteiro pelo núcleo humano ou ansiando pelo aparecimento do monstro é sinal de um trabalho bem feito diante da essência de Godzilla, dando uma surra de Hollywood. E o resultado é grandioso. Uma trilha sonora pensada para fortalecer cenas de batalha e guiar o público nas relações entre os personagens; uma direção de fotografia pensada para marcar a doença dessa sociedade, sempre com filtros escuros (predileção do verde) ou envelhecidos (reforçando a aparência de anos 1940, igualmente bem acompanhada pelos figurinos); e escolhas que entregam os frutos colhidos de um bom roteiro, elenco e linha narrativa são os componentes de domínio do gênero que temos aqui. O que chega para o público é um presente digno de constar na nossa lista de melhores lançamentos cinematográficos de 2023. Quem diria que Godzilla chegaria a esse ponto de sua glória, com o kaiju repetidamente adorado e elogiado, assim como as pessoas de seu Universo? Eis aqui uma representação invejável de temores sociais e históricos. Vida longa ao rei dos monstros!
Godzilla Minus One (Gojira -1.0) — Japão, 2023
Direção: Takashi Yamazaki
Roteiro: Takashi Yamazaki
Elenco: Minami Hamabe, Ryunosuke Kamiki, Sakura Ando, Kuranosuke Sasaki, Munetaka Aoki, Hidetaka Yoshioka, Yuki Yamada, Michael Arias, Yûya Endô, Kisuke Iida, Sae Nagatani, Ozuno Nakamura, Miou Tanaka, Rikako Miura, Gôshû
Duração: 124 min.