Home FilmesCríticas Crítica | Godzilla Minus One: Em Preto e Branco

Crítica | Godzilla Minus One: Em Preto e Branco

Horror atômico!

por Luiz Santiago
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Os estúdios Toho, assim como qualquer produtora bem consolidada no audiovisual, tem uma longa história de erros e acertos em sua trajetória. Neste caso, estamos falando de uma companhia toquiota fundada em 1932, que tem um leque pluralíssimo de produções, dos filmes de Akira Kurosawa (mais da metade dos filmes do diretor foram produzidos ou distribuídos pela Toho) aos mais estrambólicos filmes de monstros gigantes destruindo cidades e vidas. Dentre esses bichões, o mais famoso e o mais lembrado até hoje é certamente Godzilla, que depois de passar por inúmeras fases e reformulações também nos Estados Unidos na Itália (dá para contar o Cozzilla?), foi novamente abraço pela casa original e ganhou duas versões cinematográficas que entraram definitivamente para o topo da lista de melhores películas com o personagem: uma em 2016 (Shin Godzilla) e outra em 2023 (Godzilla Minus One). Com a barra de qualidade nessa altitude, o público esperava que as novas entradas nipônicas na franquia atingissem pelo menos o mesmo nível de qualidade. Até que em 2024 veio Gojira -1.0/C, a matadora versão em preto e branco do longa anterior.

O primeiro pensamento que um espectador mais chato (como eu, por exemplo) pode ter com propostas assim, é de desconfiança. Conhecemos bem a estratégia de venda dos estúdios, que fazem mudanças de baixa qualidade para gradação de cor ou modelação de dimensões, com resultados no mínimo vergonhosos para obras coloridas automaticamente transpostas para P&B; ou obras em duas dimensões automaticamente transpostas para 3D. Com isso em mente, não é estranho desconfiar do projeto da Toho em lançar uma versão em preto e branco de seu maior sucesso recente, vencedor do Oscar de Efeitos Especiais. O surfe na onda do sucesso de público e crítica não é novo na indústria cinematográfica, e este filme aqui parecia apenas mais um desses expedientes. Quando chega a hora da verdade, portanto, o espectador fica incrédulo com o que vê e se sente culpado por ter julgado previamente, de maneira negativa, uma equipe que já tinha entregue um dos melhores filmes de 2023. “Apenas” com correção de cor, Minus One ficou melhor que sua já excelente versão original.

Notem que escrevi “apenas” entre aspas. Porque não é um “apenas” no sentido diminutivo da coisa. Essa transposição para a escala de cinza não foi realizada por um comando barato e automático de computador. Inteiramente dirigido por Takashi Yamazaki, mesmo cineasta do projeto original, esse processo de mudança foi assinado pelo colorista Masahiro Ishiyama, um dos magos da Artone Film (Tóquio); um novo, mas competente estúdio de correção de cores. A dupla e sua equipe de trabalho utilizou a tecnologia do DaVinci Resolve Studio, realizando um trabalho tão grandioso, a ponto de nos fazer entender que estamos assistindo a um filme completamente diferente (e vejam: eu assisti ao colorido três vezes, duas no cinema e uma em casa, e me senti inteiramente diante de uma nova produção). Num primeiro momento, a sensação que o público tem é que está, de fato, apreciando a um terror atômico clássico.

A variação de luz-e-sombra e o cuidado na gradação para dar a sensação de um filme sem cores dos anos 1940 foram soberbos, com novidades que mudam por completo a nossa percepção da obra, como adição de manchas, granulados e “hachuras de película” que realçam a aparência de época e o elemento tenebroso em cena, que é essa criatura moldada pela ideologia atômica de uma sociedade; o resultado da ciência da destruição criada pela própria humanidade que, sem querer, deu origem ao ser que pode acabar com a vida em todo o planeta. Aqui fica ainda mais evidente a diferença de qualidade narrativa e concepção dramatúrgica entre este Godzilla e o da Monsterverse ou mesmo de Eras anteriores da própria Toho. Este lagartão aqui não é um protetor da humanidade. Não é um mantenedor do equilíbrio entre “kaijus do bem” e “kaijus do mal“. Este Godzilla é um exterminador da existência, e não importa se ele faz o que faz porque é inteligente e instintivamente movido pela ira. O que importa é que seu poder incontrolável e a sua condição de origem (produto do atomismo de guerra) fazem-no uma casualidade lamentável, um ponto a mais de dor para o protagonista do filme e, por tabela, para toda a humanidade recém-saída da 2ª Guerra Mundial.

Existe grande e delicada beleza na criação dos detalhes para os rostos dos personagens, para as máscaras nos olhos e os contornos de luz para as locações externas — e quero destacar com louvor toda a sequência de abertura, que ficou aterradora; e a sequência da Operação Wadatsumi, no mar, com uma marcação visual mais metálica, trazendo um preto e branco intenso, imitando o visual Kodak: um verdadeiro espetáculo estético. O brilho também vai mudando com fineza, dessaturando a escala de cinza à medida que fica mais forte (atentem para a cena do sopro atômico!), e baseia-se exatamente naquilo que a trama exige, provando que houve um trabalho escrupuloso na aplicação/retirada de luz, algo que jamais seria conseguido com uma transposição automática. Fiquei boquiaberto com todas as cenas no mar, que está profundamente escuro, mas essa intensidade não reflete no rosto dos personagens e não retira os contornos claros do barco e nem de “partes quentes” do Godzilla, um efeito provavelmente criado por manipulação da intensidade no que sobrou da retirada de outros espectros de cor, com um resultado belo e assustador.

Godzilla Minus One: Em Preto e Branco é um longa completamente diferente daquele que vimos em cores, em 2023. Um filme cujas mínimas pontas anteriormente deixadas são aparadas pelo conjunto emotivo, técnico e estético de toda a unidade que nos estrega, inclusive ressignificando muitas coisas do enredo. Uma obra que certamente constará, pelo segundo ano consecutivo, na minha lista de melhores do ano. E tudo isso num filme de kaiju. É impressionante! Eis o herdeiro legítimo da atmosfera e intenções na ótima criação de Ishiro Honda, em 1954. Uma monstruosa obra-prima do cinema japonês com as feridas do “ontem” refletidas no “hoje“.

Godzilla Minus One: Em Preto e Branco (Godzilla Minus One/Minus Color — Gojira -1.0/C) — Japão, 2024
Direção: Takashi Yamazaki
Roteiro: Takashi Yamazaki
Elenco: Minami Hamabe, Ryunosuke Kamiki, Sakura Ando, Kuranosuke Sasaki, Munetaka Aoki, Hidetaka Yoshioka, Yuki Yamada, Michael Arias, Yûya Endô, Kisuke Iida, Sae Nagatani, Ozuno Nakamura, Miou Tanaka, Rikako Miura, Gôshû
Duração: 124 min.

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