Em Takeshis’, o primeiro exemplar do que pode ser batizado de Trilogia Surreal Autobiográfica, de Takeshi Kitano, o cineastas se dividiu em dois – Takeshi e Kitano – para representar o contraste entre começo e fim de carreira, recorrendo a sequências oníricas para lidar com sua evolução como artista e, ao mesmo tempo, olhar para sua carreira como um todo, com diversas auto referências bem representativas do conjunto de sua obra. Gloria ao Cineasta! é o segundo “capítulo” dessa trilogia e um filme que, como o anterior, parte de uma ótima ideia, mas sofre com seu desenvolvimento.
Na verdade, “ótima ideia” é um eufemismo. Diria que a fagulha criativa de Glória ao Cineasta! não é menos do que genial, com Kitano metalinguisticamente inserido no filme como um diretor – acompanhado de sua réplica em papel machê – que discute seu bloqueio criativo e inicia a busca por um filme de grande sucesso que o faz, então, caminhar por gêneros cinematográficos que ele nunca explorou. É, para fins comparativos, sua versão de Adaptação. Há que se reconhecer, primeiramente, o valor intrínseco da coragem de Kitano em se abrir para o espectador dessa forma, basicamente afirmando, sem vergonha alguma, que é diretor de nicho e ele provavelmente sequer tem a capacidade de sair do espaço que criou. Além disso, Kitano faz uma sátira de si mesmo por toda a duração do longa, deixando bem claro o porquê um filme de, por exemplo, ficção científica não ficaria bom se fosse feito por ele e usando o boneco de si mesmo como uma representação do medo que sente em tentar coisas novas.
Em termos estruturais, Glória ao Cineasta! é ao mesmo tempo parecido e diferente de Takeshis’. O longa de 2005 conta essencialmente uma história única intercalada por sonhos lisérgicos, enquanto que o filme de dois anos depois é uma sucessão de pequenos curtas de durações diferentes colocados debaixo de um mesmo guarda-chuva temático. As semelhanças estão na “interrupção” da narrativa principal com vinhetas narrativas – sonhos em Takeshis’ e experiências cinematográficas em Glória ao Cineasta! – e as diferenças repousam na natureza mais una do filme anterior e mais fragmentária no que está agora sob análise. E era inevitável esse resultado, na verdade, pois Kitano faz indagações como “e se Kitano filmasse como Yasujiro Ozu?”, “e se Kitano criasse um noir passado nos anos 50?”, e se Kitano fizesse um filme de artes marciais (que não fosse Zatoichi 2)?” e, claro, “e se Kitano partisse para a ficção científica?”.
Como é fácil de notar, a proposta é fascinante. E, mais ainda, Kitano realmente começa muito bem seu longa com homenagens a cineastas e a gêneros cinematográficos que são embebidas na paródia e sátira ao conjunto de sua própria (assim como no caso de Takeshis’, assistir Glória ao Cineasta! sem conhecer a filmografia de Kitano esvazia muito a experiência). O problema vem quando o diretor não sabe quando parar, não sabe dizer chega para si mesmo e deixa seu longa correr desembestado. Em Takeshis’, minha crítica principal foi o desenvolvimento narrativo e, aqui, ela é focada na repetição e na falta de comedimento do diretor que, no lugar de eleger alguns gêneros e trabalhá-los, resolver jogar uma rede ampla demais e, mais ainda, sem saber lidar com o tempo de cada vinheta.
Enquanto algumas delas mantêm minutagem e foco condizentes com a ideia por trás do longa, outras vinhetas simplesmente se tornam curtas-metragens dentro da obra principal, quebrando completamente seu ritmo e caminhando em uma crescente de surrealismo que, no lugar de acrescentar, acaba detraindo do todo. Há, sem dúvida alguma, momentos excelentes e até memoráveis, como Takeshi-Exterminador do Futuro ou Takeshi-Professor de Caratê, mas eles acabam diluídos em intermináveis e cada vez mais complicadas bobagens que têm o potencial de cansar mesmo o espectador mais engajado na proposta ou apreciador do estilo do cineasta.
Glória ao Cineasta! poderia ter sido uma pequena joia sobre o processo criativo na indústria do audiovisual e um tratado sobre as pressões, dúvidas e escolhas de um cineasta ao longo de sua carreira, mas, ainda que seja possível vislumbrar seu valor, Kitano acaba soterrando sua premissa debaixo do espetáculo vazio, o que é irônico, se formos pensar bem. Ainda é um filme muito interessante de se experimentar, mas, nessa sua autoanálise, o cineasta poderia ter se inspirado nele mesmo nos momentos mais brilhantes de sua carreira e ter escolhido simplicidade no lugar de exagero.
Glória ao Cineasta! (Kantoku · Banzai! – Japão, 2007)
Direção: Takeshi Kitano
Roteiro: Takeshi Kitano
Elenco: Takeshi Kitano, Tōru Emori, Kayoko Kishimoto, Anne Suzuki, Keiko Matsuzaka, Yoshino Kimura, Kazuko Yoshiyuki, Yuki Uchida, Akira Takarada, Yumiko Fujita, Ren Osugi, Susumu Terajima, Naomasa Musaka
Duração: 108 min.