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Crítica | Gladiador (2000)

Honra, luta e vingança.

por Luiz Santiago
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Cômodo foi o único imperador romano cujo fascínio por jogos violentos fez com que atuasse como gladiador em diversas ocasiões, em lutas arranjadas para que vencesse e reforçasse o culto divino que forçava em torno de si. Inspirado por essa figura histórica controversa, o roteirista David Franzoni, logo após finalizar o trabalho em Amistad (Steven Spielberg, 1997), recebeu sinal verde para desenvolver uma antiga ideia: um roteiro ambientado na Roma do segundo século, com Cômodo sendo um dos personagens centrais. Sua principal fonte foi Those About To Die (1958), livro bem medíocre de Daniel P. Mannix sobre os combates de gladiadores e a cultura dos espetáculos da Roma Imperial. A esta base literária, foi adicionado algum conteúdo de Historia Augusta (produzido ao longo do século IV), um trabalho de ficção histórica, biografia, diário e crônica que se juntou às revisões de um time de historiadores contratados pela produção do filme, a pedido do diretor, trazendo alterações de caráter puramente dramático e cativante pelas mãos de outros dois roteiristas: John Logan e William Nicholson.

Fascinado pela ideia de dirigir um enredo sobre gladiadores, Ridley Scott, recém-saído de Até o Limite da Honra (G.I. Jane), aceitou o projeto sem pensar muito e procurou dar toda atenção possível às cenas de lutas, já que este era, para ele, o grande atrativo do projeto. O texto, definitivamente a parte mais fraca do épico, é uma vaga representação dos eventos em torno dos imperadores Marco Aurélio (121 – 180) e Cômodo (161 – 192), em uma ficção histórica costurada pelos dias de glória, queda e renascimento do General hispano-romano Maximus Decimus Meridius, figura não-histórica (mas construída com pitadas de Spartacus e Marco Nônio Macrino) que dá nó na cabeça de espectadores que acham que vão ter uma aulinha de História em tela grande. A principal ação que cerca o personagem, ou seja, as cenas de luta no Coliseu, tornou o filme um verdadeiro marco dos anos 2000, e é impossível dissociar isso de Russell Crowe, ainda na esteira do grande reconhecimento por seu papel em O Informante (1999), agarrando o papel de Maximus com todas as forças.

Nos primeiros 50 minutos do filme, o diretor Ridley Scott prepara o terreno de motivações para o protagonista e as justificativas por trás do comportamento de Cômodo (Joaquin Phoenix), dando as informações necessárias sobre aquele período da história de Roma, as conquistas do império frente aos povos germânicos, a atuação intensamente bélica do imperador Marco Aurélio e as nuances da política senatorial do momento. Nesta realidade criada pelo roteiro, existe uma pressão forte dos senadores para retomarem a República, um conflito minimizado no decorrer da narrativa, mas nunca verdadeiramente silenciado. Mesmo com um correto estabelecimento de caminhos conflituosos e dos personagens históricos neles envolvidos, os únicos grandes destaques dessa primeira parte da fita são a luta inicial dos romanos próximo a Vindobona (mesmo não sendo tão dinâmica na direção, a sequência tem boa montagem e ótimo desenho de produção); e a excelente conversa entre Maximus e Marco Aurélio (Richard Harris) sobre a sucessão ao trono. Estes são momentos de atmosfera bem diferentes, mas que se destacam por uma abordagem escrupulosa do diretor. Não dá para dizer o mesmo, porém, do restante das sequências que vemos antes da chegada de Maximus à província de Mauretania Caesariensis, onde é forçado a lutar pela primeira vez.

Nesse primeiro ato, as lembranças do General surgem em cenas dessaturadas, numa estética opaca, desprovida da grandiosidade identificada posteriormente no filme, e o mesmo tom mundano prevalece nas outras sequências de contexto, o que é uma pena. Todavia, no momento em que o nome da cidade de Zucchabar aparece na tela, tudo muda: as cores tornam-se ricas e profundas sob o olhar cuidadoso de John Mathieson, enquanto a trilha de Hans Zimmer e Lisa Gerrard, com sua gravidade solene e temas de marcha, começa a pulsar com intensidade, tecendo a atmosfera épica que antecede a lenda que se tornaria o gladiador. Filmadas no Marrocos, essas cenas revelam uma beleza natural imensa, onde o diretor, com visível conforto, permite que a câmera explore a paisagem livremente. A ambientação ganha uma fluidez natural, criando uma harmonia e leveza que não se encontravam na primeira parte do filme. É neste ponto que Gladiador começa a revelar sua verdadeira força, capturando a atenção do espectador com facilidade. A narrativa, agora mais sólida, reforça a ânsia de vingança de Maximus e entrega ao público aquilo que todos ansiavam ver: as lutas de gladiadores. Da poeira do norte da África às arenas em Roma, a história finalmente encontra coerência com sua proposta épica, sustentando-se em contextos simples, mas eficazes, que fazem o drama avançar entre os espetáculos de arena, cada vez mais brutais e intensos.

Há um detalhe que, embora possa passar despercebido por muitos espectadores, enriquece imensamente o filme ao oferecer um contexto cultural de forma sutil e envolvente, sem recorrer ao didatismo: são as duas pequenas cenas que sugerem representações ‘teatrais’ das lutas. Uma delas, com fantoches, ocorre em uma feira próxima ao Anfiteatro Flaviano; a outra, diante da arena, quando o narrador menciona a ‘encenação’ da Batalha de Zama, entre Aníbal, de Cartago, e Cipião Africano, da Numídia Romana. Esse tipo de inserção paralela à trama principal fortalece o núcleo do enredo sem a necessidade de diálogos sonolentos. E para não dizer que não temos boas interações entre personagens fora os lutadores, não podemos negar a deliciosa ironia das cenas políticas com o Senador Gracchus (Derek Jacobi) e os tensos momentos entre Cômodo e Lucilla (Connie Nielsen), que ganham uma força singular, especialmente no último ato do filme.

Ridley Scott não sucumbiu à tentação de oferecer uma felicidade fácil ao protagonista, algo que certamente contribuiu para a profunda simpatia que o público nutre por Maximus. O filme transforma o gladiador em mártir social e familiar, mas o faz de maneira sóbria, sem recorrer ao melodrama. Por isso, o desfecho, embora marcado pelo retorno da exposição visual dessaturada de um pós-vida, acaba compensando as expectativas construídas. Mesmo em seu tom melancólico e com a perda do herói, há um propósito muito maior do que as mortes, uma promessa que eleva o valor do esforço de Maximus e sugere um futuro mais promissor para Roma. Vê-se que o diretor soube manipular as emoções do espectador com uma leveza que nunca se desvia da realidade retratada, onde os jogos de poder transcendem a política e o sangue e atingem profundamente a vida de todos. Uma obra assim é impossível de ser ignorada, e a própria história do cinema pós-Gladiador nos prova isso.

Gladiador (Gladiator) — EUA, Reino Unido, Malta, Marrocos
Direção: Ridley Scott
Roteiro: David Franzoni, John Logan, William Nicholson
Elenco: Russell Crowe, Joaquin Phoenix, Connie Nielsen, Oliver Reed, Richard Harris, Derek Jacobi, Djimon Hounsou, David Schofield, John Shrapnel, Tomas Arana, Ralf Moeller, Spencer Treat Clark, David Hemmings, Tommy Flanagan, Sven-Ole Thorsen, Omid Djalili, Nicholas McGaughey, Chris Kell, Tony Curran, Mark Lewis, John Quinn, Alun Raglan, David Bailie, Chick Allan
Duração: 155 min.

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