Deixando de lado o aspecto religioso, quem não pode matar sempre se sujeita a quem pode.
– Brad “Iceman” Colbert
Sob diversos aspectos, se conseguirmos nos abstrair brevemente de que Generation Kill se passa durante uma guerra real, mais precisamente as primeiras quatro semanas da Guerra do Iraque em 2003 – ou da invasão do Iraque pelos EUA, como queiram -, a minissérie de ficção de David Simon e Ed Burns, baseada em livro jornalístico de Evan Wright, é uma quase inacreditável Comédia de Erros. E nem é necessário entrar no mérito da guerra em si, suas razões geopolíticas e macroeconômicas e as incontáveis perdas de vidas civis para chegar a essa conclusão, pois a obra acompanha, ao longo de seus sete episódios, os Marines do 1º Batalhão de Reconhecimento da Marinha dos EUA, quase que literalmente os primeiros a atravessarem a fronteira terrestre entre o Kuwait e o Iraque, em condições surrealmente desorganizadas e sem equipamento adequado, além de oficiais graduados literalmente “batendo cabeça”, que criam aquele tipo de comicidade trágica e inadvertida – mas proposital, por outro lado – que serve de pesada crítica à guerra em si, obviamente, mas ao mesmo tempo causa incômodo ao espectador do começo ao fim, incômodo esse refletido nas feições de silencioso desespero daquele que podemos classificar como protagonista, o Sargento Brad “Iceman” Colbert, interpretado muito bem por Alexander Skarsgård.
Seguindo o estilo que desafia a fronteira entre ficção e documentário que David Simon começou na criminalmente esquecida The Corner e que viria a repetir, com menos eficiência, mais ainda muito bem, em A Cidade é Nossa, Generation Kill é, em essência, uma minissérie que se esmera em observar seus personagens, todos eles baseados em pessoas reais, com um bom grau do que podemos chamar de isenção jornalística, mas sem tentar, de forma alguma, disfarçar sua natureza ficcional, mas galgada na realidade. Essa característica fica particularmente clara com a chegada, ainda no primeiro episódio, de um jornalista e correspondente de guerra encarnado por Lee Tergesen que representa o autor do livro em que a minissérie foi baseada, ainda que ele nunca ganhe um nome, sendo referenciado apenas como “repórter” ou “Rolling Stone”. Ele funciona como uma lembrança de que o vemos são, em grande parte, impressões de um jornalista que passou algumas semanas no Humvee de frente (literalmente) na guerra que é povoado pelo já citado Iceman, sempre estoico e preocupado com equipamentos e estratégia, além do falante e elétrico Cabo Josh Ray Person (James Ransone), que dirige o veículo e o particularmente perturbado Cabo Harold James Trombley (Billy Lush), que basicamente quer matar alguém ou alguma coisa a todo custo. Não que isso de alguma forma diminua a veracidade do que é mostrado, mas sim estabelece o necessário distanciamento narrativo que empurra a minissérie para um pouco mais longe do documentário, deixando claro de que se trata de uma obra de ficção.
Pela própria natureza da minissérie que abordei acima, é importante o espectador mediar suas expectativas em relação ao desenvolvimento de personagens. Generation Kill não é como as também espetaculares Band of Brothers ou The Pacific em que o drama clássico é o foco narrativo e, portanto, os personagens e seus arcos ganham destaque quase que absoluto. A obra de Simon e Burns é mais “fria”, por assim dizer, sem arcos narrativos bem definidos, sem o que se pode esperar, em circunstâncias normais, em termos de crescimento de personagens. Eles são quase que arquétipos de variados tipos de soldados americanos que se alistam voluntariamente pelas mais diversas razões, poucas delas relacionadas com algum nível de patriotismo ou algum senso de dever por seu país. Cada um carrega suas cicatrizes e agem de acordo, ainda que a abordagem de diversos deles seja surpreendentemente humana, sem a vilanização ampla e genérica – e muitas vezes injusta – que se poderia esperar de uma obra extremamente crítica como sem dúvida é Generation Kill.
Por exemplo, Iceman, apesar da frieza estabelecida já em seu apelido, é um soldado genuinamente preocupado em reduzir baixas, em explorar caminhos sem confrontação e em melhorar, em geral, a qualidade de vida (e combate) de seus companheiros, algo que ele demonstra pelas constantes reclamações dele sobre os equipamentos e o uso de seu próprio dinheiro para comprar apetrechos. Igualmente, o jovem Primeiro Tenente Nathaniel Fick (Stark Sands), superior direto de Iceman, é a encarnação da dor ao ser obrigado a seguir ordens que não fazem o menor sentido em sua cabeça, mas que ele precisa engolir e, mais do que isso, transparecer absoluta segurança a seus subordinados quando ele as passa adiante.
Os dois, juntos, parecem ser uma ilha de responsabilidade e ética em meio a um inferno de desinformação que ganha contornos até engraçados (ainda que tragicamente) como mencionei mais acima, especialmente o claro desequilíbrio mental do Capitão Dave “Captain America” McGraw (Eric Nenninger), a burrice extrema do Capitão Craig “Encino Man” Schwetje (Brian Patrick Wade) e, talvez pior do que todos, a necessidade patológica do Tenente Coronel Stephen “Godfather” Ferrando (Chance Kelly) de criar situações perigosas para que seu batalhão possa provar seu valor perante seus superiores que ele enxerga praticamente como Deuses do Olimpo, em uma daquelas construções hierárquicas muito verdadeiras no cotidiano tanto de soldados como de civis, e ao mesmo tempo inafastavelmente nojentas.
Com um fotografia naturalista tanto diurna quanto noturna, inclusive com o uso de pontos de vista ajudados eletronicamente – como visão noturna – o diretor de fotografia Ivan Strasburg acompanha a abordagem documental dos roteiros de Simon, Burns e Wright, com a direção de Susanna White (quatro episódios) e Simon Cellan Jones (três episódios) esforçando-se para criar uma benvinda unicidade visual que trafega com elegância, mas sem dourar a pílula e sem economizar em imagens chocantes, a fronteira entre ficção e documentário, dando destaque ao elenco quando necessário que, em linhas gerais, responde muito bem à pressão de fazer parecer que sim, eles estão mesmo no meio de uma guerra que eles sequer conseguem explicar a lógica por trás (e alguns sequer se interessam nisso, obviamente). A arquitetura sonora é outro aspecto que merece comenda nesta produção, pela forma como os sons raramente chamam atenção para si mesmos, facilitando o mergulho na história por mais árida que ela, no início, possa parecer a quem espera uma narrativa mais tradicional.
Generation Kill, cuja pré-produção começou quando The Wire ainda estava no ar, sendo a principal razão pela qual Ed Burns deixou a série anterior antes do início de sua quinta e derradeira temporada, é uma grande, ainda que razoavelmente desconhecida minissérie sobre a guerra moderna que desnuda por completo os tão festejados Marines como máquinas de guerra – que, como Iceman, diz, são “Ferraris perfeitamente ajustadas numa corrida de caminhões” – e critica fortemente o comando militar americano, algo que, pessoalmente, eu imagino que, de uma forma ou de outra, seja perfeitamente replicável às Forças Armadas de diversos outros países. A minissérie é uma verdadeira aula magna sobre como produzir uma obra que é capaz de caminhar com refinamento e eficiência pela difícil fronteira entre ficção e documentário. E imperdível em todos os aspectos.
Generation Kill (EUA, 13 de julho a 24 de agosto de 2008)
Desenvolvimento: David Simon, Ed Burns (baseado em livro jornalístico de Evan Wright)
Direção: Susanna White, Simon Cellan Jones
Roteiro: David Simon, Ed Burns, Evan Wright
Elenco: Alexander Skarsgård, James Ransone, Billy Lush, Lee Tergesen, Stark Sands, Marc Menchaca, Jon Huertas, Mike Figueroa, Josh Barrett, Rodolfo “Rudy” Reyes, Jonah Lotan, Wilson Bethel, Pawel Szajda, Rey Valentin, Sean Brosnan, Kellan Lutz, Rich McDonald, Eric Ladin, Daniel Fox, Chance Kelly, Benjamin Busch, Michael Kelly, Brian Patrick Wade, Eric Nenninger, Neal Jones, David Barrera, Owain Yeoman, J. Salome Martinez Jr., Nabil Elouahabi
Duração: 455 min. (sete episódios)