Gêmeos – Mórbida Semelhança foi o último filme oitentista de David Cronenberg e um dos últimos a carregar fortemente sua assinatura clássica que transita tão bem entre o horror e o thriller psicológico. Baseado no romance Twins, de 1977, escrito por Bari Wood e Jack Geasland – e que, até onde sei, não foi publicado no Brasil e, nos EUA, está fora de circulação no momento em que escrevo a presente crítica -, o longa seguia os irmãos gêmeos ginecologistas Elliott e Beverly, ambos vividos por Jeremy Irons, em uma surpreendente e inquietante trama de interdependência e interconexão física e psicológica. Mesmo em meio à intensa onda de remakes e revivals que vivemos, jamais esperaria que o filme fosse objeto de atenção renovada, mas eis que a dramaturga britânica Alice Birch arregaçou as mangas para transformar o longa e o romance em uma minissérie de seis capítulos que troca Irons por Rachel Weisz e que resulta em uma obra que, sob diversos aspectos, consegue ser ainda mais fascinante do que a de Cronenberg.
Não pensem por um segundo, porém, que o que Birch faz é apenas uma simples troca de sexo dos personagens principais. Muito ao contrário, a roteirista cria uma obra estranha, ainda que não cronenberguianamente estranha, o que é ótimo, pois ela fica livre para imprimir em sua versão seu próprio estilo e suas próprias características, além de um discurso decididamente feminino, mas que é atual e relevante e, melhor ainda, sem ser abertamente panfletário ou raso. Sim, as duas obras audiovisuais sem dúvida guardam mórbidas semelhanças – he, he, he -, mas cada uma tem sua personalidade, sua pegada, sua abordagem única a ponto de ser difícil até mesmo traçar comparações para além de comentários amplos sobre linhas narrativas e os trabalhos de atuação de Jeremy Irons e Rachel Weisz, ambos diferentemente espetaculares como os irmãos/irmãs gêmeos(as) Elliott e Beverly Mantle. A minissérie, obviamente, tem mais tempo e espaço para expandir temas como identidade e ética médica e acrescentar diversos outros afeitos à saúde da mulher, à gravidez vista não como uma doença, mas sim como algo natural e que é parte essencial da vida, com tempo até mesmo de trazer à luz horripilantes fatos históricos sobre a mulher escravizada Anarcha e sua triste relação com a origem da ginecologia moderna.
Em outras palavras, o remake usa a estrutura básica do longa e do romance, ou seja, a conexão umbilical e obsessiva entre duas geniais gêmeas ginecologistas e obstetras, a tímida e certinha Beverly com sua irmã gêmea despachada e capaz de dobrar e quebrar as regras Elliott, para criar sua própria história, usando como gatilho narrativo o desejo das protagonistas, que costumeiramente trocam de papeis apenas soltando e pretendo o cabelo, de fundar um Centro de Partos com um laboratório moderníssimo para dar às mulheres um lugar em que elas podem se sentir plenamente confortáveis tendo seus filhos, além de um espaço para estudos profundos sobre a saúde feminina. Isso as leva à um pacto faustiano com a bilionária Rebecca Parker (Jennifer Ehle em uma performance sensacionalmente assustadora), que representa tudo de errado na indústria farmacêutica e que, mais especificamente conectada com o mundo real, é a versão ficcional da família Sackler, uma das responsáveis pela crise dos opioides que afeta principalmente os EUA neste momento. O idealismo de Beverly é soterrado pela praticidade e o dinheiro de Parker e sua trupe de investidores, o que leva à criação de um centro que não necessariamente atende as mulheres, mas sim algumas delas, as endinheiradas, perpetuando o principal ponto fraco do sistema de saúde americano.
Outro gatilho narrativo importante é o desejo de longa data de Beverly de engravidar via inseminação artificial, procedimento que Elliott continuamente aplica na irmã e que continuamente a leva a abortar, algo graficamente revelado logo no início da minissérie e que é mantido como assunto recorrente e constante. Essa narrativa casa bem com o começo do relacionamento amoroso de Beverly com a atriz Genevieve Cotard (Britne Oldford, com seu porte fazendo um interessante contraste com a diminuta Weisz) que amplifica a obsessão psicótica de Elliott com a irmã, criando um hesitante e nada saudável triângulo amoroso interdependente que imediatamente começa a mostrar suas rachaduras que misteriosa e gradualmente ecoam em Greta (Poppy Liu), uma assistente/empregada/faz-tudo das irmãs Mantle.
Para além da abordagem bem gráfica dessa narrativa, com direito até a uma audaciosa montagem de partos no início, o trabalho de adaptação de Alice Birch faz de cada episódio sua própria história. Não são capítulos independentes, vejam bem, mas sim marcadamente capítulos, com direito até a passagens temporais alongadas entre um e outro e a abordagem de temáticas específicas em cada um dele, o que abre espaço para participações especiais como a de Michael McKean que funciona muito bem para introduzir a história da já citada Anarcha em uma ambientação que quase que literalmente transporta a história para alguma plantation no Alabama na primeira metade do século XIX.
Essa quebra da história em seis atos bem demarcados, obviamente uma escolha proposital dada a origem dramatúrgica de Birch, também traz alguns problemas, como um desequilíbrio tonal que começa muito inspirada em Cronenberg, mas que aos poucos tem os aspectos mais pesadamente gráficos suavizadas, somente para eles retornarem mais para o final, em uma espécie de gangorra narrativa que, admito, pode afastar o espectador. Não diria que é um problema sério e confesso que eu até gosto desse tratamento inusitado da história que cria diversas pequenas histórias dentro de uma narrativa maior que constrói e desconstrói as irmãs, com Rachel Weisz simplesmente fenomenal nos dois papeis, especialmente nos momentos em que, diante das câmeras, se transforma de Beverly em Elliott e vice-versa até que realmente não existam diferenças entre as duas dada a cada vez mais constante convergência psicológica das personagens.
Gêmeas – Mórbida Semelhança é uma fantástica releitura de um clássico de David Cronenberg que não hesita nem por um momento em abraçar sua própria linguagem e em introduzir e desenvolver assuntos afeitos mais diretamente às mulheres, criando um hino a tudo o que é feminino sem deixar de lado a abordagem psicológica perturbadora sobre as irmãs protagonistas. Toda a semelhança que existe entre o trabalho de Birch e o do cineasta canadense existe com o propósito de servir de plataforma para uma obra que diverge em quase todos os outros aspectos da original, resultando em algo que, se não posso exatamente classificar como melhor por ser tão diferente, é certamente tão fascinante e arrebatadora quanto.
Gêmeas – Mórbida Semelhança (Dead Ringers – EUA, 21 de abril de 2023)
Desenvolvimento: Alice Birch (baseado no filme Gêmeos – Mórbida Semelhança, de David Cronenberg e no romance Twins, de Bari Wood e Jack Geasland)
Direção: Sean Durkin, Karena Evans, Lauren Wolkstein, Karyn Kusama
Roteiro: Alice Birch, Ming Peiffer, Rachel De-Lahay, Miriam Battye, Susan Soon He Stanton
Elenco: Rachel Weisz, Britne Oldford, Poppy Liu, Jennifer Ehle, Michael Chernus, Jeremy Shamos, Emily Meade, Ntare Guma Mbaho Mwine, Michael McKean, Kevin Anton
Duração: 354 min. (seis episódios)