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Crítica | Garotos Ingleses

A tragédia das instituições racistas como comédia farsesca.

por Michel Gutwilen
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A cada exibição de uma nova obra dentro de sua prolífera filmografia, fica mais claro a consolidação de Marcus Curvelo como um dos cineastas brasileiros contemporâneos mais determinados em usar a comédia como farsa diante da tragédia do mundo contemporâneo e do fracasso do capitalismo. Em Jovens Ingleses, agora Curvelo está em co-autoria com Murilo Sampaio, com quem já trabalhou em Qual é a Grandeza?, em uma história que possui como ponto de partida um gesto observacional da vivência de Sampaio durante sua infância, quando se deparava caminhando todo dia com o Cemitério dos Ingleses, na Bahia — conforme revelado no debate pós-sessão em sua estreia no festival Olhar de Cinema, sendo o filme visto dentro de uma mostra de cinco curtas que dialogavam a partir do sentimento de perda.

Que objeto alienígena é este cemitério voltado para colonizadores escravagistas mortos pela “yellow fever” há mais de 200 em nossas terras, localizado em um ponto nobre da cidade, “até com vista para o pôr do sol” e um direito eterno de moradia fixa há mais de  200 anos? Enquanto isso, o próprio Sampaio revela no filme que ele não tem moradia. Se a condição financeira separa em privilégios a sociedade, Jovens Ingleses joga luz para como esta questão se estende até para o terreno da morte, do pós-vida. Em outras palavras: quem tem o direito de morrer? Esta é a tese inicial de Curvelo e Sampaio, dentro deste projeto autoral em que  também roteirizam e atuam. 

Inevitavelmente, decidir contar essa história e confrontar esta situação do mundo real já seria interessante a qualquer momento, mas há um timing muito preciso deste filme ser localizado durante a pandemia de COVID-19, porque permite que se revele um jogo dialético entre presente e passado, por paralelismos e contrastes. Sob o contexto de uma nova pandemia desconhecida e na iminência do medo da morte a qualquer momento, olhar para o passado do Brasil, em situação similar de doença (febre amarela), se torna um jeito de usar um processo investigativo para perceber que as mesmas práticas são perpetuadas há séculos e as estruturas se mantém. Afinal, neste caso, o cemitério é apenas mais um símbolo da institucionalização do racismo, de algo que existe na cara da sociedade e, mesmo assim, nada é feito.

Portanto, o filme se inicia pela ida de Curvelo e Sampaio para o Cemitério dos Ingleses, após descobrirem, por um teste de ancestralidade virtual, que possuem 1.5% de sangue inglês. Lá, os autores se colocam em um papel afrontoso de ocupar estes espaços “sagrados” e quebrar seus “tabus”, sempre a partir de uma proposição de um estranhamento pela frontalidade diante da câmera, olhando para o público e deixando, através de suas presenças, o questionamento de o que impediria que eles eles estivessem ali. Que determinação invisível é essa de que eles não possuem direito por causa de sangue? 

Como de praxe em sua filmografia, há em Curvelo muito da ironia e do deboche como ferramenta política, então a comédia se coloca em um papel de “dessacralizar” aquele próprio espaço, seja pelas poses de foto que tiram lá, ou também pelo jogo entre som e imagem, no qual, sob close-ups em seus rostos, os dois atores-diretores brincam com os estereótipos da língua inglesa. Afinal, seria isto que os credenciariam para aquele cemitério?

Enquanto isso, trazendo a problemática para um diálogo com o presente, Curvelo filma Sampaio gravando um vídeo pedindo ajuda para a “vaquinha” para o enterro de um amigo LGBTQIA+ que faleceu de COVID e estava com dificuldades de ser viabilizado, o que potencializa mais ainda a tese inicial do filme sobre a barreira invisível desses espaços. É aí que Jovens Ingleses começa a encontrar uma maior melancolia, ao ressoar o medo de morrer em seus realizadores, que vão encontrando uma forma de extravasar e canalizar seus temores em gritos raivosos contra a injustiça do Cemitério dos Ingleses, gritando em direção ao mar. Não basta só ter medo de morrer, mas de não ter lugar para isso.

Garotos Ingleses (2022) — Brasil
Direção: Marcus Curvelo
Roteiro: Marcus Curvelo, Murilo Sampaio
Elenco: Marcus Curvelo, Murilo Sampaio
Duração: 15 mins

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