Madeline Miller tornou-se uma escritora queridinha dos jovens no BookTok, especialmente a partir de 2022. Ela acabou protagonizando um fenômeno de vendas após “ressuscitarem” o seu primeiro livro, A Canção de Aquiles (2011), e manteve o feito com sua releitura mitológica seguinte, Circe (2018), também alardeada pela rede social quase cinco anos depois do lançamento original. Este Galateia é um conto definido pela própria autora como o “meio do caminho” entre os seus dois famosos romances. Não havendo real espaço para inserir essa história nas narrativas maiores, a autora desenvolveu a trama da personagem em uma jornada curta, apresentando uma releitura que não trai a essência do original, mas adiciona um ponto de vista diferente numa sequência de eventos que termina por criar um novo mito.
A história do escultor grego Pigmalião é narrada brevemente no livro, à parte a trama principal. Para quem não conhece, o resumo é simples: o citado artista, que era misógino e moralmente extremista (o que hoje chamaríamos de incel — “celibatário involuntário”), esculpiu em mármore uma mulher tão bela, que acabou se apaixonando perdidamente por ela. Afrodite concedeu vida à estátua. Galateia se casou com Pigmalião e lhe deu uma filha de nome Pafos. Ao que parece, todos viveram felizes para sempre. Na abordagem de Miller, no entanto, há a consideração de alguém que sequer teve voz em sua aparição original, nas Metamorfoses, de Ovídio. A estátua que se tornou uma mulher entregue a um homem que não se aproximava das mulheres da cidade porque, segundo ele, eram “imorais, sujas, prostitutas“.
Ao contrário do que os Pigmaliões modernos disseram em detrimento da autora e do conto, não há aqui um desprezo ao contexto histórico de Metamorfoses. Em nenhum momento a autora contesta o fato de uma obra do ano 8 de nossa Era ter os seus vícios, pensamentos e comportamentos de época. Ocorre que, vivendo dois mil anos depois, Madeline Miller está numa realidade com pensamentos, posturas e entendimento bem diferente das coisas, e é com base nesse espírito de seu tempo que ela assume claramente que está fazendo uma abordagem feminista, falando de uma prisão no topo de um penhasco onde uma mulher é monitorada dia e noite por médicos e enfermeiros. A ambientação é clássica. O entorno é clássico. Os personagens são clássicos. Mas a posição da protagonista é contemporânea. E o que não existiu na criação do enredo, dois mil anos antes, aparece aqui: a voz, a visão e as atitudes de Galateia.
O estilo de Miller, aqui, não está tão carregado da pompa encontrada nas narrativas mitológicas, como a que vemos em A Canção de Aquiles, por exemplo. A toada é mais despojada, demarcando o território da contemporaneidade através da palavra e das ideias. Ela cria, como num palco de teatro, um pseudo-ambiente grego, onde uma ex-estátua pensa sobre sua vida, sobre as atitudes de seu execrável marido (que a mantém isolada nesse hospital que tenderá nunca dar-lhe alta, para não perder as moedas de ouro de Pigmalião) e sobre sua filha Pafos. As linhas heroicas e melodramáticas do final do conto destoam um pouco do todo, mas não são incoerentes com a proposta da autora. Elas tornam Galateia, em sua grande unidade e estilo, uma história arrepiante sobre possessão, abuso, coragem e sacrifício.
Galateia: Um Conto (Galatea: A Short Story) — EUA, 2013
Autora: Madeline Miller
Editora original: Bloomsbury Paperbacks
No Brasil: Planeta Minotauro (agosto de 2022)
Tradução: Fernanda Cosenza
96 páginas