Home FilmesCríticas Crítica | Furiosa: Uma Saga Mad Max (Sem Spoilers)

Crítica | Furiosa: Uma Saga Mad Max (Sem Spoilers)

Um exercício problemático de preenchimento de espaços em branco.

por Ritter Fan
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Uma das várias qualidades de Mad Max: Estrada da Fúria é que o filme consegue dar uma aula de como criar mitologia e construir universo quase que apenas com imagens, deixando fascinantes espaços em branco para o espectador preencher mentalmente com um sorriso no rosto enquanto agarra os braços da cadeira do cinema ou do sofá da sala ao longo de um frenesi veloz e furioso. Como era esperado, porém, nove anos depois da volta de Max Rockatansky às telonas, George Miller retorna no tempo para roubar do espectador esse preenchimento de lacunas tão bacana, para ele mesmo contar a história de origem de Imperator Furiosa, vivida, em 2015, por Charlize Theron e, agora, como criança por Alyla Browne  e, depois, como jovem adulta por Anya Taylor-Joy.

Como qualquer prelúdio, Miller tem diversos limites em relação ao que pode fazer para não arriscar desdizer o que ele já estabeleceu, algo que alguns cineastas, infelizmente, pouco se importam em fazer, como foi o caso de George Lucas em sua Trilogia Prelúdio. Felizmente, Miller não é Lucas e ele efetivamente lida com tudo aquilo – ou quase – que sabemos por alto sobre Furiosa em Estrada da Fúria, mas, para não apenas fazer isso, ele trata de criar duas cartas curinga, por assim dizer, a primeira delas o grande vilão do longa, Dementus, vivido por um Chris Hemsworth com nariz prostético e capa de Thor, esta certamente um chiste em relação ao papel que o revelou, e, depois, o equivalente à Furiosa no filme anterior, Pretoriano Jack, ou Pre Jack, encarnado por Tom Burke, que, a certa altura, se torna mentor da protagonista. Como eles não existem em Estrada da Fúria, Miller tem passe livre para fazer o que quiser com eles, ainda que, em linhas gerais, qualquer espectador com um mínimo de conhecimento de estrutura fílmica, saberá exatamente o que acontece com eles.

A história, portanto, contada em capítulos com direito a telas pretas de títulos, lida com o sequestro de Furiosa ainda criança do paraíso onde mora e seu súbito arremesso em um mundo violento comandado por homens cruéis e o caminho que a leva até literalmente a véspera do primeiro dia de Estrada da Fúria, com o roteiro surpreendentemente dedicando um bom tempo à personagem ainda como Browne, permitindo espaço para a jovem atriz mostrar suas habilidades dramáticas, abrindo caminho, então, para sua “transformação” em Joy. Mal comparando, Furiosa, o filme, é, para Estrada da Fúria, o que Mad Max, de 1979, foi para Mad Max 2: A Caçada Continua, só que, evidentemente, fora de ordem, com um mote narrativo por trás de tudo tão simples quanto, ou seja, a vingança. Nesse contexto, se existe um ponto que pessoalmente desgosto é que a jornada de Furiosa se dá eminentemente em relação a Dementus e Pre Jack, com Immortan Joe – vivido por Lachy Hulme – e toda essa mitologia específica sendo deixados quase que completamente de lado, o que pode ser conveniente em termos narrativos, mas que acaba sendo um desperdício de oportunidade que deixa de explorar essa relação e, no final das contas, explicar que redenção a personagem afinal busca em sua fuga desesperada em um caminhão tanque levando as tão desejadas noivas do tirano.

Com isso, a história pode até parecer complexa, cheia de idas e vindas, com Dementus e sua completa incapacidade de ser um líder criando os obstáculos para a dinâmica entre as “cidades pós-apocalípticas” altamente especializadas que são exploradas pelo roteiro, mas a grande verdade é que o texto escrito por Miller ao lado de Nick Lathouris, mas sem Brendan McCarthy, cujo trabalho que se estendeu também à direção de arte do longa anterior e parece fazer falta, falha em criar elementos mitológicos que realmente façam a diferença, de personagens estranhos à situações tensas, com a mesma originalidade e mesma intensidade que nos acostumamos a ver em cada capítulo da saga. Pre Jack, muito sinceramente, concorre ao prêmio de personagem mais desnecessário e mais sem graça de toda a franquia, não sendo mais do que uma versão genérica e aguada de ninguém menos do que o próprio Max, com Dementus sendo um vilão especialmente vazio e estereotipado – e isso dentro de uma franquia que se destaca por ter vilões com essas mesmas características, mas que funcionam maravilhosamente bem – que só realmente se destaca por ser Chris Hemsworth por trás da maquiagem, com o ator nunca conseguindo deixar de assinalar isso ao longo dos desnecessários 148 minutos de projeção, batendo com folga o recorde de filme mais longo da série. É como ver uma versão que toda a hora tenta ser Estrada da Fúria (a comparação é inevitável, pois o próprio diretor convida a esse exercício incessantemente), enquanto que tudo o que Miller fez desde 1979 no universo Mad Max foi criar filmes que, gostando ou não, são refrescantemente muito diferentes um do outro.

Até mesmo o trabalho no quesito ação é consideravelmente menos inspirado, com claras e evidentes barrigas narrativas que não dão sequer espaço para Anya Taylor-Joy brilhar com Charlize Theron, já que a atriz acaba soterrada primeiro pelo histrionismo incessante de um Hemsworth atuando como se não houvesse amanhã e, depois, pelo seu pareamento com um Pre Jack sem vida, ainda que a trinca protagonize talvez o melhor set piece de pura pancadaria energética do longa, que se passa na Fazenda da Bala já aproximando-se do final. Por incrível que pareça, Miller parece ceder a pressões e a usar menos efeitos práticos do que o usual, preenchendo esse espaço com uma computação gráfica que até é de qualidade, mas que, porém, retira parte do charme dos quatro filmes anteriores da série, notadamente a fusão perfeita de efeitos práticos com bits e bytes de Estrada da Fúria.

Com uma fotografia de Simon Duggan que é bem menos inspirada e marcante do que a de John Seale, e uma trilha do holandês Tom Holkenborg, vulgo Junkie XL, que parece mais ser um autoplágio, Furiosa: Uma Saga Mad Max vem para contar uma história que não era realmente tão importante assim conhecermos de uma maneira que acaba detraindo tanto da franquia como um todo – nem de longe resultando em um filme ruim, mas que perigosamente se aproxima do apenas mediano -, quanto especialmente da sensacional personagem que é a Imperator Furiosa de Theron. Tenho certeza de que nado da contramão do senso comum, mas Miller pareceu-me embebido e extasiado pelas láureas que recebeu por sua obra anterior desse universo e deixou a produção caminhar no automático, sem seu usual cuidado com detalhes e sem aquele mesmo senso de maravilhamento que ele sempre conseguiu imprimir, mesmo em Além da Cúpula do Trovão, filme que é usualmente – e talvez injustamente – lembrado como o “pior” da franquia. Pode até ser que alguém venha a concluir que Max faz falta, mas a grande verdade é que quem faz falta mesmo é a Furiosa que conhecemos há quase uma década…

Furiosa: Uma Saga Mad Max (Furiosa: A Mad Max Saga – Austrália/EUA, 2024)
Direção: George Miller
Roteiro: George Miller, Nick Lathouris
Elenco: Anya Taylor-Joy, Alyla Browne, Chris Hemsworth, Tom Burke, Lachy Hulme, Nathan Jones, Josh Helman, John Howard, Angus Sampson, Charlee Fraser, Quaden Bayles, Daniel Webber, Jacob Tomuri, Elsa Pataky, David Field, Rahel Romahn, David Collins, Goran D. Kleut, CJ. Bloomfield, Matuse, Ian Roberts, Guy Spence, Robert Jones, Clarence Ryan, Tim Burns, Tim Rogers, Florence Mezzara, Quaden Bayles, Peter Stephens , Sean Millis, Lee Perry, Dylan Adonis, David Barnett
Duração: 148 min.

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