Quando fui ao cinema assistir Mad Max: Estrada da Fúria, não estava preparado para o que iria testemunhar. Sim, eu conhecia e era um grande fã da trilogia original, e sim, tinha plena consciência de que um George Miller com recursos contemporâneos poderia fazer uma versão épica de seu universo pós-apocalíptico, mas o tamanho da escala do filme, da criatividade ímpar com as cenas de ação e da construção de uma narrativa visual como poucas vezes vista no universo de blockbusters proporcionaram uma experiência inesperada, inenarrável e inesquecível. Como meu colega Ritter Fan bem disse em sua crítica sem spoilers, é wordbuilding com imagens que deixam as explicações para a imaginação. O que é contexto perto do espetáculo?
O anúncio de uma história de origem da marcante Imperator Furiosa de Charlize Theron pareceu um retorno perfeito à franquia, com Miller podendo explorar a personagem sem a sombra de Max Rockatansky, que, vamos combinar, não tem muito mais o que fazer nesse universo. A grande questão em minha mente entrando na sala do cinema era sobre a possível abordagem do cineasta, se faria algo extremamente similar ao filme de 2015 ou se tentaria criar uma produção distinta, como tem feito em toda a franquia. Quando os créditos subiram, a sensação que ficou comigo é de que a resposta é um meio-termo, com um prelúdio que é tanto um grande aceno para a obra-prima de quase uma década quanto um trabalho que busca seu próprio estilo narrativo, para bem ou para mal.
Dividido em cinco capítulos, que retratam a jornada da protagonista ainda criança (Alyla Browne) até sua juventude (Anya Taylor-Joy), o longa é praticamente um coming-of-age perverso e brutal, com romance e irmandade nascendo no meio de uma história sobre vingança e luto. Aqui jaz a principal diferença desse filme para a versão de 2015, uma vez que a abordagem narrativa é mais extensa e pessoal. Ritter classificou o tratamento como algo necessariamente negativo em seu preenchimento desnecessário de lacunas, uma opinião da qual compartilho, mas que gosto de analisar mais pela perspectiva de uma expansão de mitologia falha. Miller claramente quis ampliar seu mundo, mas talvez não da forma mais satisfatória.
O ímpeto temático de Miller é visto logo no começo da obra, quando o autor retrata uma cena da Furiosa colhendo uma maçã em um pequeno paraíso, chamado de The Green Place, aludindo ao Jardim do Éden. A iconografia cristã acompanha a história em diversos momentos, como a cena da crucificação da mãe da personagem pelas mãos de um lacaio com chifres ou a figura messiânica de Dementus (Chris Hemsworth), o grande antagonista da obra. Obviamente que são representações profanas e subversivas, mescladas com a mitologia nórdica deturbada de Immortan Joe (Lachy Hulme), algo que Miller fez em outros filmes, mas, aqui, tudo é extremamente falado.
A sobrevivência do mais apto é a lei da Wasteland, algo que todos sabemos, mas que Dementus pontua a todo instante em seus diversos monólogos, referenciando Darwin e comentando incessantemente na busca de poder do deserto. Falta a mesma sutileza de Estrada da Fúria para suas alegorias e simbologias, com cada linha de diálogo nesse filme sinalizando a importância metafórica dos eventos em tela ou explicando para Furiosa (e a audiência) questões sobre realidade ambiental, escassez de recursos e críticas militares – temos até um “historiador” que serve de professor ao longo da história. Hemsworth deve ter sozinho mais falas do que o filme de 2015 inteiro tinha de diálogos.
Essa toada segue a modelagem narrativa de Furiosa: Uma Saga Mad Max, que é basicamente um jogo de explicações para o que vimos em Estrada da Fúria, passando por como a protagonista se perdeu, como ela chegou a Cidadela, como ela assumiu o caminhão tanque, como ela descobriu o harém de Immortan Joe, etc. É difícil não analisar a produção como uma narrativa de contextos em determinados momentos, mas Miller tenta, e às vezes tem sucesso, em utilizar essa abordagem para fazer uma expansão de mitologia.
A principal escolha do cineasta é se desviar quase que completamente da relação entre Furiosa e Immortan Joe. É um pouco frustrante não ver esse contato entre os personagens (e tudo que circula o domínio de Joe) mais bem aprofundados, porque é exatamente isso que vimos com a Furiosa adulta, mas a escolha faz sentido de um ponto de vista de liberdade criativa. Ao trazer um novo vilão, Miller não precisa se ater às amarras do que já foi contado, desenvolvendo outro antagonista, outra rivalidade e outro conto de brutalidade e vingança para a protagonista superar.
Existem muitas concepções que gosto nesse sentido, como a forma que Miller apresenta novas cidades apocalípticas, novas facções e efetivamente cria uma guerra por recursos e poder em torno do arco de Furiosa. Existe uma vontade sincera do cineasta em criar novos cenários e mostrar novos horizontes desse inferno de areia, o que nos recompensa com algumas set-pieces únicas, com destaque para o pandemônio na Fazenda da Bala, em que o diretor desenha uma ação que estruturalmente foge das perseguições automobilísticas do deserto.
Infelizmente, porém, Miller não extrai tanta personalidade quanto aparentemente gostaria. Começando pelo vilão Dementus, sua representação caricata e exagerada vende mais humor do que tensão, além de que o personagem é uma reafirmação temática ambulante, explicando os meandros da história, como pontuei anteriormente. Até penso que Hemsworth tem um certo carisma e um sarcasmo sincero, mas o vilão simplesmente não funcionou para mim. Da mesma forma, a inserção do mentor/interesse romântico aguado de Pretoriano Jack (Tom Burke) nunca alcança o nível dramático desejado. Por mais que eu aprecie o uso de novos personagens e a expansão da construção de mundo, a batalha territorial genérica do roteiro não chama a atenção.
Talvez a nota pareça até alta considerando as diversas críticas até aqui, mas realmente acredito que o filme funciona dramaticamente para o arco da Furiosa, mesmo que o mundo ao seu redor soe menos interessante. Tanto a atriz-mirim quanto Anya Taylor-Joy interpretam uma personagem silenciosa e com um ótimo trabalho de olhares. Por mais expositivo que Dementus seja ou por mais genérico que Jack é, a protagonista é bem construída.
Isso acontece porque Miller, mesmo em um longa inchado, sabe trabalhar muito bem as passagens de tempo da personagem dentro dos cinco atos e a transição de idade, gradualmente desenvolvendo com qualidade e muita brutalidade os eventos traumáticos da personagem e sua evolução como uma sobrevivente. A abordagem mais pessoal e íntima de Miller com a personagem do que com Max em 2015 funciona em tons dramáticos melhores, inclusive em um desfecho que é menos épico e mais emocional.
Além disso, Furiosa: Uma Saga Mad Max é uma produção divertida em termos de puro entretenimento. Temos muitas encenações práticas de tirar o fôlego, além de que a insanidade de Miller é vista com versatilidade, se menor em escala. A sequência de abertura é uma cena ação longa, mais espaçada do que estamos acostumados, enquanto temos as características cenas de perseguições de carro alucinadas ao longo da produção. A trilha sonora de Junkie XL, apesar de redundante, é efetiva, e o filme como um todo tem ótimo ritmo, apesar de claramente passar do ponto em seus extensos 148 minutos.
A questão é que, em comparação com Estrada da Fúria, o trabalho visual simplesmente não é tão genial. A integração de efeitos práticos e efeitos visuais é estranha em determinados momentos, sendo que o maior uso de computação gráfica não faz sentido pensando no tipo de produção artesanal que Miller normalmente prefere com a franquia. Como a narrativa é muito expansiva, exponencial e com diversas passagens temporais, dá para sentir como a energia não é a mesma e como a história soa menos épica – culpo, parcialmente, também a fotografia, que deixou o deserto menos grandioso aqui.
A sensação final é de que Furiosa: Uma Saga Mad Max é mais contexto do que espetáculo, focada em expandir a mitologia da franquia com uma abordagem menos visualmente criativa. Ainda assim, a exploração do passado de Furiosa é dramaticamente engajante dentro desse pós-apocalipse que continua sendo cruel, enquanto a ação, se menos inspirada, ainda é melhor do que a maioria dos blockbusters recentes. O mundo continua interessante, a protagonista também, mas claramente faltou um pouco mais de personalidade narrativa e tato visual.
Furiosa: Uma Saga Mad Max (Furiosa: A Mad Max Saga – Austrália/EUA, 2024)
Direção: George Miller
Roteiro: George Miller, Nick Lathouris
Elenco: Anya Taylor-Joy, Alyla Browne, Chris Hemsworth, Tom Burke, Lachy Hulme, Nathan Jones, Josh Helman, John Howard, Angus Sampson, Charlee Fraser, Quaden Bayles, Daniel Webber, Jacob Tomuri, Elsa Pataky, David Field, Rahel Romahn, David Collins, Goran D. Kleut, CJ. Bloomfield, Matuse, Ian Roberts, Guy Spence, Robert Jones, Clarence Ryan, Tim Burns, Tim Rogers, Florence Mezzara, Quaden Bayles, Peter Stephens , Sean Millis, Lee Perry, Dylan Adonis, David Barnett
Duração: 148 min.