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Crítica | Fúria Incontrolável (2020)

por Leonardo Campos
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Não é de hoje que a nossa sociedade vive um intenso e assustador colapso. Na abertura de Fúria Incontrolável, suspense antagonizado por Russell Crowe, alguns motivos são expostos junto aos créditos da produção. Primeiro, testemunhamos como espectadores perplexos, o personagem desenvolvido com muita adrenalina e raiva acumulada, a destruição de um lar, com ataques de martelo e um incêndio provocado pelo então “monstro humano” da narrativa, um homem brutal, com sentimentos de ódio acumulados. Ao cortar para os créditos, temos a junção de vários trechos de reportagens a versar sobre a condição humana na contemporaneidade. Os códigos de civilidade, discutidos por Freud e outros autores em suas teorias, se perderam com o aumento dos níveis de estresse da população. As imagens revelam ataques de fúria em tribunais, durante assaltos, atropelamentos, brigas no trânsito, longos congestionamentos, semáforos que alegorizam a pausa de uma sociedade sempre apressada, dentre outras situações para deixar qualquer pessoa em seu “Dia de Fúria”.

Aliás, por falar no filme dos anos 1990 com Michael Douglas, o recente Fúria Incontrolável parece uma versão mais turbinada e violenta, porém um pouco menos interessante que a história sobre um homem “atacado” pelo estresse que domina a sua vida num determinado dia de derrubada de protocolos e desacatos diversos. De volta ao elucidativo momento de abertura, cenas de caos revelam o quão estamos mergulhados na selvageria. É o preço do combustível que não para de crescer, a celeuma do desemprego e suas altas taxas, as pressões por uma aparência perfeita, tal como o culto ao corpo e as redes sociais. Em suma, o panorama introdutório nos revela o perigoso caminhar da humanidade por um bifurcado trajeto de dor e tragédia. Como aponta um dos narradores de telejornal que compõem o quebra-cabeça de textos deste início revelador, “nós já nascemos com raiva”. E é assim que os personagens do roteiro de Call Ellsworth estão ao longo dos 85 minutos de filme. Frustrados, enraivecidos, oprimidos. Qual a opção encontrada por estas criaturas ficcionais para desanuviar? Simples: discutir, gritar, ofender o “outro”. Dizem que dá alívio, mas será esse o melhor caminho mesmo? Bastante complexo.

Sob a direção de Derrick Borte, o argumento de Fúria Incontrolável é simples. Russell Crowe é o Homem, sem nome no desenvolvimento do roteiro. Captado sempre por ângulos que ressaltam a sua força e brutalidade, trabalho da assertiva direção de fotografia de Brendan Galvin, o antagonista é alguém com raiva. Muita raiva. E o roteiro não faz questão alguma de humanizar essa criatura. Ele simplesmente passou por coisas ruins e está descontando a sua ira em todos aqueles que atravessam o seu caminho sem se imiscuir. O caos começa a reinar de maneira mais centralizada depois que Rachel (Caren Pistorius), mãe de Kyle (Gabriel Bateman), sai de casa atrasada, perde bastante tempo no trânsito lento e irritante da cidade e para piorar, afronta o motorista que está à frente de seu carro, alguém que ela sequer imagina quem seja, mas que lhe dá uma certeza: acabou de atrapalhar ainda mais o seu dia que já começou com cobranças de toda parte, desde um cliente ao filho que lacrimeja diante da ausência do pai.

A moça, tomada por seus impulsos, utiliza a buzina de maneira, digamos, mais agressiva que o habitual. Isso incomoda bastante o motorista que, sabemos, é o Homem de Russell Crowe, uma figura alta, bastante parruda, dominado pelo ódio e fúria que corre por suas veias. Deste momento para o epílogo, o leitor já deve imaginar o desenvolvimento do argumento. Ele vai perseguir e infernizar Rachel, destruir ao máximo o que pode pelo meio do caminho, aniquilar violentamente alguns contatos da jovem mãe e trilhar um caminho de horror para todos os envolvidos em sua saga. Acompanhados pela trilha sonora urbana e tensa de David Buckley, os personagens de Fúria Incontrolável são colocados diante de um teste absurdo de limites. Com seu carro mais alto, ele já estabelece o tom de ameaça. Longe dos acampamentos em lagos distantes e casas mal-assombradas góticas, o horror aqui é urbano, brutal, numa demonstração da nossa capacidade enquanto humanos estressados, em atingir o nível da barbárie.

Próximo ao desfecho, após a ordem ser estabelecida, mesmo que o trauma se mantenha por longo período na vida de Rachel e Kyle, uma alegoria da buzina retorna para nos mostrar que todo cuidado é pouco no trânsito e às vezes manter a frieza e a tranquilidade vale mais que se entregar aos instintos que podem ser fatais para ambas as partes envolvidas. É uma lição básica, até clichê de certa maneira, mas que funcionou bem no desenvolvimento do filme. Como entretenimento, Fúria Incontrolável é uma produção para te manter conectado ao enredo do começo ao fim. Não há muito espaço para firulas e a ação é ininterrupta. Já como reflexão para debatermos nosso contexto, a trama perde um pouco o seu impacto por ser uma retomada de muita coisa que já vimos antes em Um Dia de Fúria, Voo Noturno, etc. Não que isso seja um problema para quem não tem o referencial das produções mencionadas. A questão é que temos a impressão de já ter visto tudo isso antes, e ressalto, em filmes melhores. Ademais, não há como ficar sem ranger de nervoso quando o Homem diz para Rachel que a sua terapeuta ligou e remarcou a consulta para sexta. Ele reforça no recado: “acho bom ela caprichar, pois você vai precisar”. No mínimo aterrorizante, como toda a jornada da personagem.

Para quem gosta de filmes com teses, Fúria Incontrolável traz em meio ao turbilhão de emoções, pontos de articulação sociológica breves, mas interessantes. Temos o ataque do Homem num pequeno restaurante, recepcionado com pavor por alguns, mas captados pelos celulares de outros que até se arriscam para registrar o momento de tamanha violência. Por falar em celular, sabemos o quão perigoso é dirigir e utilizar tais aparelhos, mas ainda assim, há personagens que insistem em realizar tal façanha. Outro problema: por que assumir o volante de um automóvel e ficar falando com o passageiro do banco de trás, desviando o olhar da direção? Complicado, não é mesmo? Para desviar de um trecho com lentidão, Rachel não se importa em ser exemplo ruim para seu filho e trafega pelo acostamento. Além disso, comete algumas incorreções perante os códigos de trânsito de qualquer nação do planeta. E por fim, a buzina, metafórica aqui como catalisadora do caos: há limites para o seu uso? Um tom adequado? Existe a ética da buzina? Caros leitores, reflitam.

Fúria Incontrolável (Unhinged) — EUA, 2020
Direção: Derrick Borte
Roteiro: Call Ellsworth
Elenco: Russell Crowe, Caren Pistorius, Gabriel Bateman, Jimmi Simpson, Gregory Hobson, Lucy Faust, Anne Leighton, Michael Papajohn, Devyn A. Tyler
Duração: 85 min.

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