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Crítica | Flee: Nenhum Lugar para Chamar de Lar

A animação 2D mais real do que se pode imaginar.

por Davi Lima
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Flee

O documentário Flee, de 2021, não tem seu diferencial por usar animação para contar sua história real, tendo em vista que há um número considerável de documentários que já fizeram isso com criatividade para suprir o incomum para o documentarista. Em 2014, Watchers of the Sky usou a animação como ilustração de possibilidades da complexidade da escrita do documentado Raphael Lemkin, e Last Hijack colocou a animação como artifício de representar o que não poderia ser gravado na Somália. Esses dois filmes apresentam o ponto-chave de colocar o 2D ou 3D, seja qual for o estilo de produção animada, como interface.

Essa é a potência de se criar qualquer coisa, como um truque de imaginação, mesmo num documentário. E essa mesma ideia é posta no filme dirigido por Jonas Poher Rasmussen, mas com uma tensão maior nessa interface. Não mais como uma ilustração, nem como artifício imaginativo somente, e sim como proteção do entrevistado, preservando a fuga do refugiado afegão chamado pelo pseudônimo Amin. Nisso que se conta a abrangência da própria gama de possibilidades que a animação potencializa nesse documentário, propondo uma brecha em experiência quanto mais se quer contar a história por intermédio da aproximação imaginativa da animação.

Em constante desencaixe, como se realmente sempre estivesse em fuga, buscando se encontrar por meio da entrevista, o personagem principal se posiciona para ser gravado, para ser ouvido num divã do entrevistador. Tudo isso em animação, mas com um delineador verossímil que estabelece uma fotografia e uma composição de plano para averiguar uma mise-en-scène – unidade estilística do filme – dentro do universo da animação. Há momentos que na obra, quando pertence a essa narrativa do presente da entrevista, a câmera fictícia, emulativa, treme, colocando o entrevistado estático, como se o filme em animação representasse um processo de gravar um documentário, com o entrevistador de costas que ora aparece, como uma linha criativa de documentários acredita que traga mais realismo, às vezes sai de cena. 

Mas o que torna tudo aquilo real não é a ilustração 2D, com ritmo pausado e um antropomorfismo minimamente lúdico, mas sem deformações que soe cômica ou divertida, e sim a voz, a edição de som que bem mixada coloca o espectador na entrevista, em uma diferenciação de dublagem dos personagens animados, mas com ruídos que aportam um contexto realista que a animação transgride. Por um lado, cria um certo conforto emocional, tendo em vista que seria diferente ver o entrevistado chorando de verdade, ou rindo, mas evoca o sentimento do entrevistado: de fuga. Ele não pode se mostrar como refugiado.

Assim, mesmo com o mesmo estilo de animação, o passado e as deformações visuais de montagem que transmitem o sentimento de maneira abstrata, quase que interlúdios de um choro de entrevista, de uma memória que foge da dor e se abstrata, acinzenta, perde forma, mas tem movimento suficiente para causar dor; o 2D que mostra o percurso de retirada de Amin se torna uma ilustração ficcional, como se realmente pudesse entrar na mente dele. Nesse sentido, o fator verbal constante da narração, comparativamente à edição de som mais cristalina que uma gravação que de fato aconteceu com o entrevistado, ainda que soando uma captação da realidade, o passado é evocado. 

Junto a isso, a animação se torna um invólucro de representação, não mais se substituindo pela realidade que não pode ser descoberta, a identidade de Amin. Há uma divisão de identificação do que é memória, do que é presente e do que são emoções abstratas animadas, mas na flecha do escape tudo se mistura, de modo que uma câmera isométrica mostrando alguma cidade americana – fotografia de fato – se paraleliza com a fotografia animada que mostra a cidade afegã, ou Copenhague, para onde Amin se refugiou, com emulação de câmera isométrica também.

Dessa forma, constrói-se pelo menos três narrativas, em que as cenas reais de gravação de registro, mostrando comícios do partido comunista no Afeganistão, ou de quando o McDonald’s chegou a Moscou, em que a história se passa entre as décadas de 70 e 90, no passado, são mais base histórica e representativa do tempo do que fato narrativa. Ela se torna a ilustração de fato, não a animação. Mas sem dúvida, uma das narrativas de Flee é o som. Com a edição, permite-se que tudo se torne real e ao mesmo tempo uma fuga da realidade quando a imagem parece percorrer uma entrevista gravada constantemente, até mesmo das cenas do passado. O som persevera, talvez, o ponto mais enfático do que faz documentários, que é o realismo. Até mesmo as programações mexicanas que passavam em Moscou, a que Amin assistia com a família, tem dupla dublagem, como acontece nas baixas produções de transmissão televisiva de dublagem. Além disso, o som é o que permite o entrevistado não fugir do filme, já que tudo está em escapatória.

Amin começa o filme respondendo a pergunta do seu entrevistado de qual é o significado de casa enquanto a emoção abstrata de pessoas correndo vai se tornando mais concreta. Ele diz algo semelhante: que a casa é o lugar que não precisa sair, que não precisa se movimentar. E durante todo o filme, seja tematicamente, verbalmente ou visualmente, a fuga é o cerne, a unidade estilística visualmente que contrapõe harmonicamente o som que aproxima o espectador. Soa como uma dialética perfeita para que a narrativa do significado de casa seja alcançada como apoteose visual, utilizando a interface da fuga do entrevistado como delimitação da casa que ele compra junto ao namorado.

As fugas são tão variadas, seja com o entretenimento televisivo em que Amin fantasiava sexualmente Jean-Claude Van Damme, seja pelas músicas, como “Take on Me”, que retrata sua infância, seja pelo momento em que ele se abriu para a família sobre sua homossexualidade. São fugas das fugas de ser um refugiado desde pequeno, nunca podendo ter a sua narrativa dita, sempre chorando por histórias inventadas que ainda assim diziam muito. E da mesma forma que são muitos escapes, a animação é a representação da potência ilimitada de interface para propiciar o efeito dessas variadas escapatórias.

Por isso que, embora não haja uma revolução em Flee usar animação como artifício documentarista, é o fator ilimitado e ao mesmo tempo necessário para limitação visual de identificação do entrevistado para representar a fuga. Se podemos ver uma vez a fotografia real do terreno da casa de Amin, é porque nós encontramos a casa. Se a animação é a fuga da realidade, nesse documentário a fuga se torna animação. 

Flee: Nenhum Lugar para Chamar de Lar – Dinamarca| França| Suécia| Noruega, 2021
Direção: Jonas Poher Rasmussen
Roteiro: Jonas Poher Rasmussen
Elenco: Rashid Aitouganov
Duração: 90 minutos

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