“Por que você insiste em ficar?” é uma pergunta que só se verbaliza na parte final de Freda, mas que já paira desde o início da jornada da protagonista de mesmo nome. Todos ao seu redor parecem arranjar algum jeito, ainda que questionáveis, de tentar sair da vida de miséria em Porto Príncipe, no Haiti. Seu irmão arrisca a possibilidade de uma vida nova sob os riscos de uma travessia ilegal. Sua irmã encontra em homens poderosos (o padre e o político) a possibilidade de fuga através do envolvimento amoroso (e que também parte do interesse, como a personagem admite). Seu namorado, que é quem faz a pergunta a ela, também decide partir para Santo Domingo, após quase morrer em conflito. O que então prende Freda na sua cidade natal? Se Freda diz que seu sonho é “viver em paz”, e o filme parece fazer questão de mostrar que isso é impossível nesta cidade, qual sua âncora?*
Uma primeira resposta mais aparente para esta pergunta seria a potência de um desejo de transformação que existe latente em Freda. Diferente das outras pessoas de sua família, o acesso à Universidade permite sua inclusão em um contexto de criação de uma conscientização política. Deste modo, ela passa a fazer parte de uma juventude que não quer fugir de Porto Rico e deixá-la abandonada, mas sim lutar por ela diante do neocolonialismo e o risco de apaziguamento de sua cultura (o que vai desde o vodu até a prática de embranquecimento, tão citada). Em contraposição às cenas do ambiente acadêmico, inserem-se capturas documentais de protestos pela cidade contra a Petrocaribe, em uma ruptura do mundo diegético de Freda que acorda o espectador. Não são só personagens de uma história fictícia debatendo, mas uma verdadeira angústia que perpassa para no mundo real.
Neste sentido, as cenas dentro do ambiente acadêmico mostram uma mini panela de pressão em que a montagem vai acompanhando as trocas acaloradas entre todos naquele ambiente, que divergem pelos meios que buscam a mudança (a conciliação pacifista vs. a revolução). No geral, elas são apenas mais um ingrediente desta panela de pressão macro, parte de um filme que se permite passar tempo demais cozinhando toda sua situação, em constante estado de pulsação ao apresentar todo o contexto de Porto Príncipe, chocando vários elementos contraditórios que vão se acumulam ao ponto da implosão. Um deles é o olhar do filme para a não-pacífica coexistência de religiões, em que o catolicismo importado (Généus faz questão de escalar o padre como um homem branco), que atinge camadas de maior faixa etária, conflita com o vodu, o qual o filme associa aos jovens.
Tudo isso se soma a uma tentativa de mostrar o contexto da vida que é possível a uma jovem daquela região. Dentro deste movimento, Généus consegue criar um balanço entre os tantos motivos exemplificadores da vontade de fugir de Porto Príncipe (principalmente no que envolve a violência, seja contra a mulher ou dos tiroteios), mas que também consegue achar em suas imagens razões para ficar, tanto nos rituais vodu quanto no show entre os jovens. Independente de serem momentos prós ou contras, pode–se dizer que eles se integram em uma lógica rítmica, de uma sinergia entre a juventude, por um filme sempre em ação e fluído, que faz sentir a potência do jovem por este aspecto sensorial, remetendo ao que Steve McQueen fizera recentemente com o fabuloso Lover’s Rock, parte da antologia Small Axe.
Por outro lado, não é só o macro de Porto Príncipe que envolve Freda, mas também o micro, representado pelo contexto de sua família e sua própria experiência pessoal enquanto jovem mulher. A atriz Néhémie Bastien é uma figura versátil porque ela consegue se impor para além de sua baixa idade como uma adulta forçada, diante das circunstâncias da vida, mas, aliada ao olhar íntimo de Généus, consegue se permitir momentos de uma volta a um estado de inocência, exteriorizados no sorriso aberto da atriz, principalmente quando está com seu namorado, seu maior desarmamento. Inclusive, outra delicadeza na encenação, que é uma repetição simples de um gesto, é o movimento de Freda em deitar a cabeça no colo de sua mãe. Mãe essa, aliás, que é uma força que cresce gradualmente em Freda, até se tornar sua força centrípeta que culmina no longo plano final que desaba em cima de seu rosto.
Em um filme que fala muito sobre o futuro da juventude feminina de Porto Príncipe, não há como abordar o assunto sem traçar uma espécie de investigação da geração anterior que influencia diretamente nela. Esta personagem está longe de ser fácil, com moral complexa, caracterizada pelo fanatismo religioso e que já foi cúmplice de atos abusivos contra as próprias filhas. Ainda assim, Généus não opta pelo caminho da vilanização desta mulher, também como não busca exatamente uma conciliação ou redenção.
O que o filme nunca precisa dizer, mas está extremamente óbvio pelos paralelismos das jovens sendo abandonadas por seus interesses amorosos é o fato de que a própria mãe de Freda também já passou pelo mesmo, sendo mãe solteira. Após acompanharmos toda a trajetória angustiante da protagonista, surpreende que a catarse final da obra não venha de si mesma, permitindo um último acerca de contas com o passado, do reconhecimento do fracasso que é culpa direta dela, mas também gestionado ao longo dos anos por uma perpetuação geracional do abandono da mulher, mostrando que também se está diante de uma vítima. Pode ser que após o fim da narrativa vista, na semana seguinte os conflitos já voltem, mas o que é certeza do perpétuo é o laço criado entre as três jovens mulheres dentro de Porto Príncipe.
*– Vale dizer que Freda foi visto no Festival Olhar de Cinema, parte da Mostra Competitiva, e sua exibição ao longo da programação se deu sempre em horários seguidos de A Ferrugem, que a princípio parece totalmente oposto, mas vistos lado a lado permitem a visão de muitos espelhos, especialmente no que se refere aos protagonistas que possuem o desejo de ficar e lutar por sua terra natal, com um vínculo emocional a ela, enquanto todos ao seu redor vão embora.
Freda (Idem, 2021) — Haiti, França, Benin
Direção: Gessica Généus
Roteiro: Gessica Généus
Elenco: Néhémie Bastien, Djanaina François, Fabiola Rémy, Jean Jean
Duração: 93 mins