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Crítica | Freaks and Geeks – A Série Completa

por Gabriel Carvalho
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“O baile é amanhã. Ela é uma líder de torcida. Você assistiu Star Wars vinte e sete vezes. Faça as contas.”

Contém spoilers.

A vida escolar é um dos períodos mais interessantes para serem abordados em séries de TV. Enquanto os dilemas adolescentes passam a ser considerados dramalhões até mesmo superficiais com o chegar da vida adulta, o seu universo único é capaz de ser relevante para o público alvo ou até mesmo para os nostálgicos de sua época. Ganhando espaço aos poucos no cenário televisivo, os dramas adolescentes receberam um real destaque no início dos anos 90, com a série Beverly Hills 90210, também conhecida como Barrados no Baile no Brasil. A popularização do subgênero, ao final da década de 90, deu margem para Paul Feig escrever o roteiro para um possível piloto de Freaks and Geeks, sua obra hipotética. Nas mãos de Judd Apatow, o roteiro foi para frente e exibido pela NBC, as desventuras dos irmãos Weir, na década de 80, tornaram-se realidade.

A trama tem dois focos principais, ambos protagonizados pelos Weir. Por um lado temos Lindsay Weir (Linda Cardellini), que transtornada pela morte de um ente querido decide transformar-se, partindo de uma estudante ideal para uma adolescente rebelde. Juntando-se aos Freaks, grupo composto por Daniel Desario (James Franco), Nick Andopolis (Jason Segel), Ken Miller (Seth Rogen) e Kim Kelly (Busy Phillips), Lindsay tem que se adequar a um mundo que não é, em um primeiro momento, verdadeiramente seu. Por outro lado, Sam Weir (John Francis Daley), irmão mais novo de Lindsay, representa junto de seus melhores amigos, Neal Schweiber (Samm Levine) e Bill Haverchuck (Martin Starr), os Geeks. Tendo que lidar com a rejeição da maior parte dos alunos do William McKinley High School, o trio é fortificado pela amizade que um tem pelo outro, enfrentando a maior parte dos obstáculos que surgem juntos.

No lado dos Freaks, Lindsay, antiga “matematleta”, agora se vê com problemas que não faziam parte de seu habitual. É papel de Kim Kelly se opor à entrada de Lindsay no grupo, a qual possui problemas pessoais sérios. Kim está no meio de um núcleo familiar desgastado, permeado por relações conturbadas com seus parentes. Ela é realmente uma Freak, deslocada socialmente não só do espaço acadêmico, como do mundo. Em contrapartida, Lindsay tem ao seu lado a família perfeita. Ela possui pais atenciosos. Possui condições econômicas agradáveis. Tudo está teoricamente à favor de Lindsay. Então por que ela quer ser uma Freak? Se envolver com aqueles adolescentes marginalizados? Ela é realmente aquilo que aparenta ser? Um questionamento pertinente que é respondido apenas ao final do último episódio, mas desenvolvido em uma temporada cheia de coisas relevantes para falar.

Sobre uma diferente perspectiva, pode ser usado como parênteses do parágrafo acima o pequeno arco de Millie Kentner (Sarah Hagan) no episódio Dead Dogs and Gym Teachers. Após alguns acontecimentos, Millie, maior parceira de Lindsay antes dela se juntar aos Freaks, busca aproximação com o grupo de Daniel Desario. No entanto, diferentemente de Lindsay, a mudança de Millie soa artificial, enquanto a de Weir soou natural. A amizade entre as duas nesse capítulo se estende enquanto uma tenta provar para a outra que aquele universo inédito não lhe pertence. Essa é uma prova concreta de que uma verdadeira relação não precisa estar cercada pelas mesmas pessoas, pelos mesmos eventos e pelos mesmos objetivos. Só precisa existir. Então, para impulsionar a carga dramática da obra, em termos interpretativos, Linda Cardellini foi a escolha mais espetacular possível, transmitindo seguramente as inseguranças de Lindsay. A personagem passa por recaídas do seu estado de espírito atual para o passado e nenhuma aparenta ser um artifício narrativo barato. É um trabalho de construção e desenvolvimento de personagem muito eficiente. O seu conflito com Kim Kelly, a título de exemplo, é provocativo, sem se tornar clichê. Em poucos episódios a divergência entre as duas sofre uma reviravolta monstruosa não deixando o arco maçudo.

Outrossim, diferentemente dos Geeks, que já são abordados inicialmente em um nível de amizade enraizado, Lindsay tem que aprender a se relacionar com aquelas novas pessoas. No caso, Nick, personagem de Jason Segel, é o primeiro a estabelecer vínculo com a garota. Os dois acabam por entrar em um relacionamento, o qual, por fugir das convenções desse estilo de série, torna-se muito mais crível. Segel, em um de seus primeiros grandes trabalhos, está perturbador, levando o espectador a sentir pena de Nick em determinados episódios e medo em outros. Dentre todos, este é o personagem com mais camadas se comparado com os demais Freaks. Já Ken Miller é Seth Rogen, e Seth Rogen é Ken Miller. O surpreendente disso é que estamos falando da estreia interpretativa de Rogen, a qual seria base para a maior parte de sua carreira cinematográfica. Pelo menos o ator é funcional e engraçado, com o roteiro colaborando ao impulsionar, mesmo que tardiamente, um lado mais sensível do personagem na incorporação de Amy Andrews (Jessica Campbell) no elenco.

Ademais, ainda temos James Franco interpretando Daniel Desario, personagem que com o auxílio do roteiro faz emergir do arquétipo de má influência um alguém deveras mais multidimensional. Um ponto extremamente positivo é que, mesmo situando os Freaks em meio a drogas, sexo e muito álcool, o roteiro não procura criticá-los moralmente. Não há certo e errado. O texto da série explora todas as questões apresentadas de forma bastante realista e provocativa, incitando o debate e tomando partido das coisas apenas quando realmente necessário. Nada é verdadeiramente preto no branco. Por exemplo, é papel de Daniel protagonizar a maior parte dos encontros dos Freaks com os Geeks. A conclusão desse arco no último episódio da temporada, Discos and Dragons, serve como uma amálgama para ambos os grupos, coincidindo as diversas maneiras de se observar o mundo durante a fase escolar. Em uma visão mais pobre, os Geeks seriam uma concepção mais próxima do correto e os Freaks do errado. Mas temos aqui uma obra que não trata ambos como opostos. Os dois só querem, no final das contas, se sentirem inclusos.

Para complementar essa visão de Lindsay e sua trupe da pesada, é preciso ressaltar o episódio The Little Things e sua mensagem sobre politização na adolescência. Há um forte teor ácido envolto da presença do vice-presidente George Bush no colégio, o qual ressalta a importância da informação e da discussão de ideias. Quando Lindsay está confusa com o que perguntar ao político durante sua estadia no local, o Sr. Rosso (Dave Allen), orientador da escola, tem um papel crucial na construção da personagem de Linda Cardellini. É um dos laços mais honestos entre professor e aluno da televisão e que, em um último momento, rende os comentários sobre a banda americana Grateful Dead. Desde a abertura com Bad Reputation, de Joan Jett, até o encerramento belíssimo da série com Ripple, da mesma banda citada anteriormente por Rosso, Freaks and Geeks é um espetáculo musical de muito bom gosto. E isso porque não indiquei a presença de ícones como David Bowie, Diesel Boy, Queen, Joe Jackson, Van Halen, Styx, Billy Joel, Journey e muito mais. A série fica ainda mais energética e espirituosa quando nos deparamos com esse acervo musical esplêndido.

Agora, levando a análise para o lado dos Geeks, o show faz uma ótima construção de aceitação pessoal. Em um primeiro plano básico, Sam não quer ser um nerd, mas sim ficar com a garota de seus sonhos, ser respeitado pelos outros alunos e não sofrer mais o assédio moral de bullys como Alan (Chauncey Leopardi). Com a ajuda de seus amigos, ele vai entendendo que o mais importante é ele continuar sendo ele mesmo, pois no futuro o que restará de bom foi ter passado esse momento, atualmente tão problemático, com as melhores companhias possíveis. Sua atenção e cuidado com Lindsay é muito bonita, e mesmo que não seja aprofundada totalmente, rende situações e diálogos muito bons, como os dos dois primeiros episódios Pilot e Beers and Weirs. A representação dos pais dos Weir, Jean Weir (Becky Ann Baker) e Harold Weir (Joe Flaherty), é feita de forma extraordinária pelos roteiristas. Adentrando no subjetivo paternal, temos aqui duas pessoas que buscam a todo custo manter contato com seus filhos. Enquanto os jovens tendem a se livrar dos mais velhos, os mais velhos entram em uma caminhada de reencontro com suas criações. Em episódios como Tricks and Treats, vemos com pesar Lindsay preterindo sair com seus amigos a ter um momento a sós com Jean, sua mãe, que acaba por ter que lidar com o distanciamento de sua filha. Para não tornar a carga dramática dos pais muito pesada e quebrar o tom da série, os dois, principalmente Harold, são impregnados com ótimas sacadas cômicas, rendendo desde a primeira cena momentos hilários.

O trio de Geeks é completado por Bill e Neal, os melhores amigos possíveis para se ter na história da televisão. Neal é o mais sério do grupo e o mais consciente do status de perdedores que os olhos alheios enxergam neles. No entanto, Neal também procura retirar o conceito de Geek que os outros atribuem a ele, colocando-os apenas como pessoas não compreendidas. O personagem também adentra em alguns segmentos sobre traição paternal, o qual embora aparenta ser inicialmente um desvio de foco, acaba por gerar algumas discussões instigantes e termina em uma nota substancialmente agridoce. Para finalizar essa trindade charmosa, temos Bill Haverchuck, o personagem mais icônico e mais memorável da série. Em oposição a Sam e Neal, Bill tem orgulho do que ele é, possuindo um enorme coração, sempre disposto a ajudar os outros. Tudo que a série tem de melhor a oferecer se encontra na figura de Bill e olha que a série tem muita coisa boa para oferecer. Interpretado maravilhosamente por Martin Starr, o ator recebe os momentos mais dramáticos quando seu treinador Ben Fredericks (Thomas F. Wilson, ou o eterno Biff Tannen) é principiado como um possível padrasto. O desenvolvimento da identidade de Bill é orientado por momentos hoje já considerados clássicos da televisão estadunidense, como as introduções de The Garage Door e Noshing and Moshing. Não deixando de citar, é claro, a deslumbrante, formidável, sublime e quem sabe talvez fantástica sequência de Bill assistindo a televisão ao som de I’m One, da banda britânica The Who. Sério, é uma cena realmente encantadora.

Infelizmente, mesmo com a carta de amor a Freaks and Geeks transposta na crítica acima, e mesmo com os milhares de fãs que a série acolheu nesses quase 20 anos de sua exibição original, o programa teve apenas uma temporada, sendo cancelado pela baixa audiência. O seu legado está transmitido na sua presença em inúmeras listas de “Maiores Séries de Televisão de Todos os Tempos”, arrebatando um terceiro lugar na lista de “Maiores Séries de Televisão dos Anos 2000”, da revista Time. Também está posicionada, dessa vez em primeiro lugar, na lista de “60 Programas Cancelados Cedo Demais” da revista TV Guide. Freaks and Geeks é afinal uma série excepcionalmente bem escrita, que traz uma comédia afiada, dramas de alto nível, personagens inesquecíveis e uma trilha sonora digna de aplausos. Mesmo seu fim prematuro, nem mesmo bullys malvados irão tirar esses méritos.

Freaks and Geeks – A Série Completa (EUA, 1999-2000)
Criador: Paul Feig
Produtor Executivo: Judd Apatow
Elenco: Linda Cardellini, John Francis Daley, James Franco, Samm Levine, Martin Starr, Seth Rogen, Jason Segel, Busy Phillips, Becky Ann Baker, Joe Flaherty
Duração: 18 episódios de aproximadamente 44 min. cada.

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