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Crítica | Frankenstein ou O Prometeu Moderno, de Mary Shelley

A obra-prima que eternizou o nome de Mary Shelley na história da literatura ocidental.

por Leonardo Campos
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Talvez menos lido que assistido em suas numerosas traduções para a linguagem audiovisual, Frankenstein ou o Prometeu Moderno, de Mary Shelley, é um romance curioso. Inicialmente publicado sem o nome da autora, em 1818, devidamente reconhecida na edição de 1831, com prefácio do problemático esposo, Percy Shelley, o livro é de uma estrutura bem simples no que tange aos seus aspectos narrativos e literários. Não é uma daquelas obras-primas complexas e de relação obtusa com os que se dedicam ao prazer de sua leitura. É nessa simplicidade, embasada por uma panorâmica digestão de clássicos antecessores e de um contexto social, político e cultural de intensas transformações, que a escritora britânica concebeu uma história gótica distanciada daquilo que era o padrão em sua época. Explico: diferente dos fantasmas do passado que retornam em busca de retaliação, em zonas assombrosas com castelos e tabernas repletas de indivíduos com segredos e suas respectivas contas em aberto com as suas ações pregressas nebulosas, o romance em questão emula o presente, mas prefere olhar para o futuro.

É por isso que muitos especialistas o consideram como o ponto de partida para o que chamamos de ficção científica. Dentre tantas edições disponíveis em nosso mercado editorial, o texto lido para essa reflexão é o disponibilizado pelo trabalho sempre coeso e deslumbrante da Darkside Books. Com impressão e acabamento da Gráfica Geográfica, projeto editorial da Retina 78 e tradução de Márcia Xavier de Brito, a edição de luxo do romance é soberba. A diagramação permite um avanço fluente do leitor e as ilustrações são pertinentes ao conteúdo de Mary Shelley. A tradutora, além do excelente trabalho de transposição linguística, também oferta uma introdução digna de aplausos, um primor para quem é do mundo acadêmico e se interessa em pesquisar o clássico, num texto que atende perfeitamente ao leigo, desejoso em desvendar os segredos por detrás da composição, bem como compreensão do legado e impacto cultural da publicação. Elucidativa, em sua breve tessitura introdutória, a autora traz peculiaridades biográficas de Mary Shelley, juntamente como uma análise contextual dos elementos que prevaleciam no gótico da época, demonstrando o diferencial de Frankenstein.

Logo depois, a edição traz os dois prefácios, de 1818 e 1831, comumente associados ao romance, enredo que começa logo em seguida. Antes de adentrarmos na história de Victor Frankenstein e sua criação amaldiçoada, delineio por aqui outro ponto pertinente da versão em questão. Além do romance, ganhamos também quatro contos da autora, assertivamente apresentados por Carlos Primati. O primeiro é Valerio: O Romano Reanimado, de 1819, curiosa história sobre um cidadão da Roma Antiga que volta à vida no século XIX e contempla a condição arruinada de seu país. O segundo é Roger Dodsworth: O Inglês Reanimado, outro retorno da escritora ao tema de sua obra-prima. Após a leitura de um artigo jornalístico sobre as tentativas de reanimação de um homem encontrado congelado após uma avalanche, Shelley especula sobre essa figura diante do encontro com um mundo completamente modificado. São enredos interessantes, mas nenhum deles se aproxima da amplitude de Frankenstein.

A seleção continua com Transformação, o único do agrupamento de contos que não dialoga diretamente com a imortalidade, nos traz uma curiosa história sobre um personagem falido e alijado do amor, figura ficcional que decide trocar de corpo com um anão por um período de três dias, tendo como recompensa um tesouro. Em seus dilemas morais, e com provável inspiração em um drama poético de Byron, o conto traz debates que dialogam completamente com celeumas encontradas em Frankenstein.  Publicado em 1833, temos a oportunidade de contemplar O Imortal Mortal, enredo que demonstra o fascínio da autora pela temática, algo que também nos aponta as suas limitações temáticas no bojo da literatura. Ao longo do conto, nós acompanhamos a trajetória de Winzy, jovem que na busca da cura para uma desilusão amorosa, toma um elixir para a imortalidade, confundindo a bebida com um possível conteúdo para curar a sua dor. É o mais interessante dos contos no quesito temático, e também um dos mais conhecidos além da sua “obra máxima”. Assistente de um alquimista, a história tem como personagem secundário, para Cornélio Agrippa, um filósofo e ocultista que realmente existiu.

Agora, que apresentei a embalagem e os conteúdos adicionais da luxuosa edição, nós seguimos para análise do romance. Dividido entre as cartas de Walton, enviadas para a sua irmã, e os 24 capítulos que narram a trajetória errante de Victor Frankenstein, da concepção ao abandono da criatura que, aos olhos da sociedade, é uma aberração, importante delinear que o nome corriqueiramente associado ao monstro é um equívoco de muitas pessoas que não conhecem o ponto de partida literário. Por causa da sua enorme popularidade no cinema, há um contingente considerável de consumidores de cultura que não conhecem a proposta de Mary Shelley de não nomear o monstro. Frankenstein é o sobrenome atribuído ao cientista que concebe vida ao ser que abandona posteriormente, um personagem erguido num flerte entre o galvanismo, a junção de partes de cadáveres, dentre outras experiências científicas que dialogam com as leituras da escritora diante do que era publicado em seu contexto de constantes transformações na química, na medicina e em outras áreas do conhecimento. Por isso, inclusive, o cientista é chamado de “Prometeu Moderno”, dum interessante diálogo intertextual da escritora que era uma leitora profícua e, nesse esquema, trouxe para a sua história seu amplo repertório cultural.

O título se relaciona diretamente com a figura mitológica de Prometeu, que desafiou os deuses ao trazer o fogo para a humanidade, simbolizando o impulso humano em busca de conhecimento e poder. Primeiramente, é essencial entender a tragédia de Victor Frankenstein, o protagonista da novela. Assim como Prometeu, que se atreveu a desafiar as regras divinas, Victor busca ultrapassar os limites do que é considerado moralmente aceitável ao criar vida a partir de matéria morta. Sua ambição em descobrir os segredos da vida e da morte ecoa a insatisfação de Prometeu com o status quo da condição humana. Ambos os personagens são arquetípicos do homem que se atreve a buscar o desconhecido, revelando uma inquietação humana inerente: a necessidade de entender e dominar seu próprio destino. Entretanto, a narrativa de Shelley adverte sobre os perigos dessa ambição desenfreada.

Após criar sua criatura, Victor é tragicamente incapaz de confrontar as consequências de suas ações. A criatura, que é rejeitada pela sociedade e até mesmo pelo próprio criador, se torna um símbolo da alienação e do sofrimento resultante da busca irresponsável pelo conhecimento. A trajetória de Frankenstein, marcada pela culpa e pela ruína, ressoa com o mito de Prometeu, cuja punição por desafiar os deuses é igualmente severa e dolorosa. Em Frankenstein, marcas da ciência da época, como a galvanização e os estudos sobre a eletricidade, são exploradas de forma a questionar até onde a criatividade humana pode ir sem provocar consequências catastróficas. Essa preocupação é pertinente no atual debate sobre biotecnologia e manipulação genética, revelando que a busca pelo “fogo” contemporâneo, semelhante ao utilizado por Prometeu e Victor, deve ser acompanhada de uma reflexão ética rigorosa. É por isso que o romance é tão relevante e possui conexões com debates ainda nos dias atuais. Após dois séculos de publicados, o seu centro nervoso literário é tema da ciência moderna.

Outro aspecto que confere a Frankenstein uma qualidade mítica é o conceito de criação e responsabilidade. Victor Frankenstein, em sua obstinação, ignora suas responsabilidades como criador. Após dar vida à sua criatura, ele a rejeita, levando a consequências terríveis. Este paradoxo da criação é um tema central na mitologia: os deuses criam e, muitas vezes, não são capazes de lidar com as consequências de suas criações. O mito de Prometeu, que deu fogo aos humanos e foi punido por Zeus, se entrelaça com a narrativa de Frankenstein. Ambas as histórias discutem a ideia de que o conhecimento e o poder trazem não apenas luz, mas também trevas. Essa intersecção torna a saga de Victor Frankenstein um mito porque nossa sociedade ainda luta com as complexidades da criação e a necessária responsabilidade que vem com ela. Ademais, o romance também explora a alienação e o desejo de aceitação, temas aproveitados por muitas traduções da história para outros suportes semióticos. A criatura, apesar de sua aparência grotesca, anseia por amor e aceitação. Sua busca desesperada por um propósito humano é um reflexo das questões existenciais que cada indivíduo enfrenta.

O tema da exclusão social, que leva à tragédia, transforma a obra em uma alegoria mítica sobre o que significa ser humano. Também bastante atual, não é mesmo? A rejeição que a criatura sente ressoa profundamente com muitos que se sentem deslocados ou marginalizados em suas comunidades. Junto a isso, a história de Frankenstein também é um mito porque incorpora as questões essenciais que permeiam a experiência humana: a busca por identidade, o desejo de poder, a luta contra a solidão e a necessidade de conexão. Como mencionado anteriormente, contemplamos ao longo de cartas e 24 capítulos, essa trajetória errante que dialoga com a mitologia da criação bíblica do Gênesis, as tramas tenebrosas de Fausto, de Goethe, bem como com o poema épico Paraíso Perdido, de John Milton. Apresentarei panoramicamente, os caminhos percorridos pela estrutura em questão, para elucidar mais questões sobre o romance.

A história começa com cartas de Robert Walton, um explorador do ártico, endereçadas à sua irmã, Margaret. Ele narra seu desejo de descobrir novas fronteiras e se depara com um homem à beira da morte: Victor Frankenstein. Walton cuida do homem desconhecido, que, depois de recuperar-se, começa a contar sua trágica história. É o que acompanhamos nos primeiros dos capítulos. Logo mais, entre o terceiro e o quinto, Victor relata sua infância em Genebra e seu fascínio pela ciência. Ao ingressar na Universidade de Ingolstadt, ele se dedica ao estudo dos princípios da vida. Eventualmente, ele se torna obcecado pela ideia de criar vida a partir de matéria morta. Após muito trabalho, ele finalmente anima sua criação, mas horrorizado pela aparência da criatura, abandona-a. Entre os capítulos seis e oito, a narrativa se concentra na vida do “Prometeu Moderno” após criar o seu monstro. Ele retorna para casa, onde descobre que seu irmão, William, foi assassinado. Victor suspeita que a criatura tenha cometido o crime. Justine Moritz, uma amiga da família, é injustamente acusada e condenada pela morte de William.

Devastado, o cientista se retira para a natureza em busca de consolo. Durante uma caminhada nas montanhas, ele encontra a criatura, que começa a contar sua jornada. A criatura fala sobre seu isolamento, sofrimento e desejo de aceitação, e revela que foi maltratada por todos ao seu redor devido à sua aparência. É o que está disposto nos capítulos nove e dez. Mais adiante, a criatura narra sua experiência de vida em segredo, observando uma família na floresta. Ele aprende a falar e se comportar, mas também percebe seu próprio desespero e solidão por não ser aceito. É um interessante jogo polifônico de Mary Shelley, escolha que amplifica as vozes do romance ao longo dos capítulos onze e doze. Logo mais, a criatura tenta se aproximar da família, mas é rejeitada. Sentindo-se abandonada e traída, ela busca vingança. Ao invés de um ser social, a criatura se transforma em um símbolo do que há de mais sombrio na natureza humana. Ela confronta Victor e exige que ele crie uma companheira para ela. São as peculiaridades narrativas que estão entre os capítulos treze e dezessete.

A história continua com o cientista hesitante, mas inicialmente concordando em criar uma nova criatura. No entanto, enquanto trabalha em sua nova criação, ele torna-se paralisado pelo medo das consequências de sua ação. Finalmente, ele destrói o trabalho antes de completá-lo, levando a uma retribuição violenta da criatura. É o que Mary Shelley dispõe entre os capítulos dezoito e vinte, antes do monstro partir em busca de vingança. Victor perde importantes figuras de sua vida, incluindo seu melhor amigo, Henry Clerval, e sua esposa, Elizabeth. Em estado de desespero, o “Prometeu Arrependido” persegue a criatura em uma jornada pelo mundo, algo que o leva ao extremo norte. Essas ações, dispostas entre os capítulos vinte um e vinte três, demonstram habilidades da escritora na construção de uma atmosfera de suspense, mas também comprovam que mesmo sendo um clássico e uma ótima história, Frankenstein depende bastante de coincidências e nos apresenta muitas inconsistências, deslizes que, por sua vez, não estragam a experiência do leitor, afinal, errar não é humano?

No último capítulo, o romance culmina na busca de Victor por justiça e entendimento. Ele se depara com Walton mais uma vez e incita o explorador a desistir de sua busca, advertindo-o sobre os perigos do conhecimento desmedido e da ambição. A história termina de forma trágica, com a morte de Victor e a promessa da criatura de se suicidar, desaparecendo na escuridão do ártico. Walton, em suas cartas, se comunica abismado com a irmã, apresentando a história do cientista e informando, entre dúvidas sobre a caminhada, sobre o seu retorno para casa. Muitos de nós, na contemplação do relato ao longo do romance, percebemos o quanto há de Frankenstein diluído em suas traduções na constante reprodutibilidade técnica ao longo século XX, isto é, em suas traduções para os filmes da Universal, da Hammer, nas versões televisivas, dentre outros suportes semióticos que transformaram e ainda reestruturam a base literária de Mary Shelley para atender as demandas narrativas das múltiplas linguagens em nossa sociedade ávida por consumo de entretenimento. Entre o monstro da escritora e a figura icônica de Boris Karloff e seus correlatos, há muita coisa sobre Frankenstein para ser desvendada.

Você, caro leitor, se já leu: o que achou da sombria jornada desse errante “Prometeu Moderno”?

Frankenstein ou O Prometeu Moderno (Frankenstein, or, The Modern Prometheus/Reino Unido, 1818)
Autoria: Mary Shelley
Tradução: Márcia Xavier de Brito
Editora: Darkside Books
Páginas: 304

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