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Crítica | Frankenstein de Mary Shelley (1994)

Um suntuoso trunfo estético para a obra-prima de Mary Shelley

por Leonardo Campos
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Por que Frankenstein é uma história ainda tão atual? A minha tese é a base narrativa, dominada por temáticas ainda relevantes na contemporaneidade, transformadas ao passo que o mundo se modifica, tanto tecnologicamente quanto pelo viés comportamental. Muitos consideram essa tradução tecida em pormenores pelo cineasta Kenneth Branagh como uma das mais eficientes do universo de transporte semiótico do livro de Mary Shelley para o cinema. Escrito e publicado pela primeira vez em 1818, Frankenstein nos apresenta a trágica história de Victor Frankenstein, aqui interpretado por Branagh, em dupla jornada profissional, como ator e diretor, um jovem cientista obcecado pela ideia de trazer os mortos de volta à vida. O resultado de suas experiências resulta em uma criatura que, embora criada por ele, acaba se tornando um ser completamente isolado e atormentado, mote que ganha força e muita plenitude com o desempenho dramático de Robert De Niro na figura do “mostro” rejeitado pelo seu criador megalomaníaco. Interessante observar que apesar de ter sido escrito há mais de dois séculos, o clássico permanece extremamente relevante em nosso cenário contemporâneo. Um dos aspectos mais notáveis de Frankenstein, respeitado pela tradução assinada por Frank Darabont e Steph Lady, é a sua reflexão sobre a busca incessante pelo conhecimento.

Victor Frankenstein representa o arquétipo do cientista arrogante que acredita que é capaz de ultrapassar os limites da natureza, tomado por um desejo de dominar as forças da vida e da morte, tendo como base a sua história repleta de traumas que engrenam a sua postura impulsiva, numa época onde não se falava de terapia e inteligência emocional. Além disso, o filme aproveita com esmero os elementos de seu ponto de partida: além da busca por conhecimento numa perspectiva perigosa e desenfreada, a narrativa também aborda a questão da alienação e do isolamento. A criatura de Frankenstein, apesar de sua aparência grotesca, é uma representação da busca por aceitação e amor. Desde sua criação, ela é rejeitada e temida por todos que encontra, incluindo seu criador. Essa alienação resulta em uma profunda solidão e desespero, configurando um ciclo de violência e vingança que perde os limites e, por aqui, ganha uma projeção pomposa. Tanto nos aspectos psicológicos quando no derramamento de sangue, Frankenstein de Mary Shelley é uma narrativa cinematográfica tensa e investe bastante na palavra-chave “violência” para guiar o desenvolvimento da tragédia de Victor, devidamente desenvolvida, em especial, pela experiência shakespeariana de Kenneth Branagh.

Dentre outros pontos que o filme desenvolve bem, temos a adequada ideia de responsabilidade. É um recurso notável do texto, algo que pode ser oriundo do material escrito pela dupla já mencionada de roteiristas ou parte de algumas modificações do diretor, pois as histórias sobre os bastidores de produção nos contam que a tradução em questão não foi um exercício nada tranquilo para os envolvidos no projeto. Frankenstein, ao desenvolver a criatura, não assume a responsabilidade pelas consequências de suas ações. O filme é quase um slasher, com uma série de mortes pelos caminhos pavimentados pelos personagens que se antagonizam. Da fuga de Victor aos espaços por onde a criatura sai em busca de seu criador, rastros de sangue e morte deixam os habitantes do espaço fílmico em postura de alerta. Victor tenta fugir de suas obrigações como criador e, ao fazer isso, causa uma série de tragédias. Contextualizando com a nossa famigerada atualidade, a tal era da informação e da tecnologia, a responsabilidade é uma preocupação crescente. Novos dispositivos e plataformas digitais oferecem enormes oportunidades, mas também podem causar danos consideráveis quando utilizados de maneira irresponsável. E é aqui que reside a atualidade questionada no começo dessa reflexão.

As discussões sobre privacidade, desinformação e o impacto das redes sociais sobre a saúde mental não são, em grande parte, uma extensão do dilema enfrentado por Victor Frankenstein? A obra-prima de Mary Shelley, em seu extenso legado e impacto cultural, nos permite refletir que a necessária junção entre ciência e a inovação, importantes para soberania de toda sociedade, devem vir acompanhadas de uma consciência moral. Esqueça os moralismos, verso aqui sobre o conceito base de ética e moral. Caso contrário, os resultados podem ser catastróficos. E esse caos todo vem de outra palavra-chave bem desenhada na tradução em questão: a ambição. O filme em si, grandioso, já é uma representação das ambições de Branagh, mas, trazendo para o contexto interno da tradução, a narrativa é eficiente ao retratar as consequências da ambição desmedida e da falta de compaixão. Quando Victor Frankenstein abandona sua criação, ele se torna um personagem que ignora não apenas a responsabilidade que tem, mas também a própria humanidade da criatura. Essa falta de empatia leva a um ciclo de sofrimento evitável, mas que é ficcionalmente necessário para que a catarse se estabeleça e nós possamos refletir sobre os desdobramentos do que contemplamos enquanto entretenimento.

Ao longo de seus 123 minutos, acompanhamos o protagonista desde sua infância, uma figura que se mostra fascinada pelos mistérios da criação. Influenciado por suas leituras de textos antigos e pelos experimentos de seus professores, ele decide que pode desafiar os limites da morte. A obsessão de Victor por descobrir o segredo da vida o leva a estudar intensamente e, eventualmente, a realizar experimentos em cadáveres, buscando entender a essência da vida e penetrar nos mistérios da existência. Ele traz as suas hipóteses para a sala de aula, mas é ridicularizado por todos, em especial, por seus mentores. É o motor que impulsiona o seu desejo de provar que as suas teorias estão devidamente organizadas. Assim, após anos de dedicação e isolamento, Victor finalmente realiza sua criação. Em uma cena dramática e marcante, ele reúne peças de diferentes corpos e, através de um processo complexo que inclui eletricidade e alquimia, consegue animar a sua criatura. Entretanto, em vez de um ser perfeito ou sublime, Victor fica horrorizado ao ver que sua criação é um “monstro”, uma figura grotesca marcada por deformidades, totalmente deslocada dos padrões aceitáveis pela sociedade. Tudo isso, visualmente deslumbrante no trabalho de maquiagens e efeitos visuais da equipe de Branagh.

A criatura, imersa no sofrimento e na rejeição, representa a culminação do desejo e do desespero do criador. E o resultado, como nós sabemos, não pode ser outro a não ser conjugar o verbo “vingar”. A criatura, incapaz de entender sua própria existência e a rejeição que enfrenta da sociedade, inicia uma jornada trágica em busca de aceitação e amor. Durante sua busca, a criatura demonstra uma inteligência e sensibilidade notáveis, revelando-se mais capaz de sentir emoções do que seu criador. No entanto, sendo constantemente marginalizado e temido, esse monstro se transforma em um ser amargo e vingativo, como se diz no âmbito da filosofia, um produto do seu meio. Em um dos pontos centrais do enredo, a criatura confronta Victor e exige que ele crie uma companheira, alguém que possa compreendê-la e amá-la, na esperança de encontrar a felicidade que lhe foi negada. O dilema moral que se segue é instigante: Victor, atormentado pela culpa e pelo medo das implicações de suas ações, pondera veementemente em atender ao pedido da criatura. Essa decisão não apenas reflete a luta interna de Victor entre sua ambição e sua responsabilidade, mas também expõe a complexidade da relação entre criador e criatura. Ao negá-la, Victor condena não só a si mesmo, mas também sua criação, a um destino solitário e trágico. É quando o rastro de horror e morte ganha mais projeção na trama.

Os conflitos de Victor, tanto internos quanto externos, são explorados ao longo do filme, refletindo a luta entre a razão e a paixão, o bem e o mal, e as implicações da ciência quando usada sem ética. Branagh é competente ao desenvolver a narrativa onde desempenha dupla missão: é assertivo como diretor e firme como ator. A luta constante entre criador e criatura culmina em um clímax emocional, onde a relação entre ambos se torna irreversivelmente desgastada, principalmente depois da perda considerável que os dois colecionam ao longo da jornada. A criatura, cada vez mais desesperada e isolada, busca condenar Victor a um sofrimento semelhante ao que ele próprio experimentou. O encontro final entre os dois personagens é carregado de tensão e dor, onde ficaram evidentes não apenas o ódio, mas também uma tragédia compartilhada. Melodramático em sua estrutura, um dos pontos que mais gerou críticas ao filme na época de seu lançamento, o filme expõe Victor, cercado pela destruição que sua criação lhe causou, um homem atormentado e incapaz de encontrar paz. A criatura, por sua vez, é deixada em um estado de desolação, consciente de que a sua busca por amor e aceitação foi em vão.

Visualmente deslumbrante, o filme é eficiente em seu tom gótico, trabalho que parte da direção de fotografia de Roger Pratt e do design de produção de Tim Harvey, ambos comprometidos com a elaboração estética conectada com o romance de Shelley. A visão de Branagh busca preservar a atmosfera gótica e os temas filosóficos do livro, apesar de algumas necessárias licenças poéticas, afinal, estamos diante de uma transição de suporte semiótico. A escolha de Robert De Niro para interpretar a criatura é um dos pontos mais formidáveis, pois a sua participação nos oferece um desempenho com nuances que humanizam o monstro, indo na contramão do apenas estranho ou bizarro, como é o caso desse mito ao longo das múltiplas traduções cinematográficas anteriores. De Niro traz uma profundidade emocional ao papel, explorando o sofrimento e o desespero da Criatura de maneira envolvente. A escolha de Helena Bonham Carter para interpretar Elizabeth, o interesse amoroso de Victor Frankenstein, também é muito coerente, pois a atriz consegue expandir a complexidade e a importância de uma personagem importante no desenrolar da trama. A sua performance adiciona uma camada de profundidade emocional e pessoal ao arco narrativo de Victor, permitindo-lhe uma evolução intrigante.

E, por falar em arcos, o texto incorpora várias subtramas e personagens, histórias paralelas que ao mesmo tempo em que ajudam a explorar mais a fundo o impacto das ações de Victor em sua família e na sociedade, também alguns problemas perdoáveis, mas evitáveis, de ritmo para o filme que em alguns trechos, se entrega ao perigoso tom de monotonia. Composta por Patrick Doyle, a textura percussiva é emotiva e envolvente, uma trilha sonora que permite ao filme criar a atmosfera dramática necessária para os eventos intensos e trágicos da história. É uma música que contempla adequadamente o tom épico e gótico da narrativa. Algo já mencionado, mas que é importante destacar novamente: os efeitos visuais e o trabalho de maquiagem são fundamentais para trazer a Criatura à vida de maneira convincente. A transformação de De Niro é impressionante, destacando seu aspecto monstruoso, mas também suas características humanas. Há muito equilíbrio nesse setor que poderia impactar consideravelmente na história se assumido por realizadores descuidados. E, por fim, em seu desfecho, um tom amargo se estabelece. Branagh, firme e convicto da mensagem do ponto de partida literário, evita convencionalismos hollywoodianos e foca em sua formação teatral, dando ao espectador um encerramento trágico coeso, numa das traduções do romance que mais possui correspondências com o texto de base.

Frankenstein de Mary Shelley (Mary Shelley’s Frankenstein | EUA – 1994)
Direção: Kenneth Branagh
Roteiro: Steph Lady, Frank Darabont (baseado no livro de Mary Shelley)
Elenco: Robert de Niro, Kenneth Branagh, Helena Bonham Carter, Tom Hulce, Aidan Quinn, Ian Holm, Robert Hardy, John Cleese, Richard Briers, Cherie Lunghi, Celia Imrie, Gerard Horan, Trevyn McDowell
Duração: 123 min.

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