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Crítica | Francisca (1981)

por Gabriel Carvalho
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“Vilar de Paraíso, 23 de setembro, 1854.”

Não existem máscaras para as palavras. A segunda cena de Francisca mostra o protagonista, José Augusto (Diogo Dória), sem máscara em meio a um baile de fantasias, sorrisos e danças. Há quem diga que exista tristeza no olhar seco do personagem, fitando a câmera – ou a nós – sem um pingo de expressão. Se não o entristecimento – como verbaliza uma mulher posteriormente -, apenas vazio. Caso, em algum momento do longa-metragem, sinceramente exista sentimento no coração de Augusto, certamente estará desencontrado com as crenças daqueles que o cerceiam, principalmente sua amada raptada. Amada? O encerramento da tetralogia de amores frustrados, comandada por Manoel de Oliveira, expõe os sentimentos perdidos, aqueles que nem mesmo aparentam surgir, podem inexistir nas expressões das pessoas, nos melodramas das imagens, porém, se potencializam pela palavra e pela encenação. O cinema, o teatro e a literatura são um.

O cinema torna imortal passagens efêmeras, que tentam, através de seus comunicadores, concretizar uma verdade, um posicionamento incontestável, sobre sentimentos, vícios e almas, mas que se contradizem logo depois. Durante uma peça de teatro, os monólogos morreriam com a passagem de cenas. Também são muitos os entretítulos que juntam os capítulos de um livro sendo recontado através do cinema. A palavra substitui o vácuo. Com a ironia subjacente a elipses, exemplificando a fragilidade dos personagens e seus achismos, Manoel de Oliveira, a exemplo, é jocoso com a constatação dos amigos José Augusto e Camilo Castelo Branco (Mário Barroso), em uma cena, de que nunca retornarão a Vilar do Paraíso, onde reside a adorada Fanny Owen (Teresa Menezes). Já na consequência mora a piada. O que seriam todos os monólogos, senão, majoritariamente, “discursos pomposos e miséria de experiência”? Porque os amigos retornariam.

Nasce, através desse meio, a maior premissa do projeto, em que ambiciosos por alguma coisa, que nem seja a ganância pela ganância em virtuar-se, anseiam o amor de Fanny Owen. Camilo Castelo Branco, personagem recorrente na carreira de Manoel, seja assim, enquanto personagem, ou como inspiração para outras adaptações cinematográficas, porque Castelo Branco realmente existiu, julga o seu amigo. José Augusto responde com o mesmo comportamento. São os dois pessoas vis? São os dois pessoas insensíveis? Agustina Bessa-Luís, responsável pelo romance original, no qual sua adaptação baseia-se com extrema fidelidade, criou personagens fascinantes pela destruição, pelo que querem e não conseguem. Quase profético, portanto, a primeira conversa dos amigos sobre Fanny, em que o protagonista aponta justamente o seu futuro, ou seja, “alimentar os desejos para estudar as consequências da insaciedade”. E os rostos encenam.

Os olhos miram para nós e não para si mesmos. Termina por ser, em muitas ocasiões, o teatro puro, em que o público é o grande enfoque, no entanto, igualmente a vontade do cineasta em expressar esse desencontro de emoções. Pois, no cinema, a retratação da realidade costuma ser o desejo, em que o que é vivenciado pelos personagens importa. Os atores se enxergam. Mas a derradeira jornada de José Augusto – e, secundariamente, a de Camilo – não é mais sobre nada. O amor está perdido, desencontrado. Quando um ama, o outro some. Quando o outro ama, aquele que amou morre. Só sobra, para quem quer que seja os artistas, nos olhar, esperar que acreditemos na dor expressada, e enfim beber sobre os corpos dos que morreram. Os personagens se perdem e a tristeza é enormemente criada através desse contorno pontualmente inexpressivo. O texto assume uma força monstruosa. Eis a palavra ganhando cor e forma própria.

Uma adoecida Fanny, na cama, nos convence de sua essência retirada pelo passar do tempo, presa em uma casa, sozinha e ansiosa do retorno do seu amado. Quando retorna, desencanta. Manoel sabe como evidenciar a solidão no intrínseco dos seus personagens. Teresa Menezes é uma personificação certeira para essa transposição literária da personagem – e que realmente existira, com origem britânica como aponta o seu nome. Francisca como um Oliveira bressoniano, por outro lado, é um apontamento um pouco complicado de ser feito, apesar de certas semelhanças. O corpo não é eternamente o meio. O cineasta português é obviamente anti-naturalista, porém, ora ou outra recorre a dramatizações mais exageradas, combinadas com a constante inexpressividade, para impactar. Os risos e os gritos quando o raptor e a raptada chegam em terra nova. O tapa na cara como guinada para retornar ao vazio. A leitura e a releitura.

Em outra instância, a própria agressão mostra-se como um momento mais íntimo do que qualquer outro, por sustentar um contato físico quase inexistente no restante da projeção. O que querem os homens dos monólogos? Os desejos que para sempre serão desejos? Esses são os amores fatais entre pessoas perdidas e incomunicáveis. Com duração estendida, de quase três horas – um tempo, entretanto, que não se compara a ambições anteriores e posteriores, como Os Sapatos de Cetim –, Francisca resiste aos seus poucos cortes. Traja muito capricho na cenografia. Os planos são duradouros, os ângulos não carregam um viés ordinário, mas o que está em cena é posicionado em vista da teatralidade. Mesmo assim, ainda existe espaço para a música, como um terceiro componente da solução entre imagem e palavra, mostrar-se presente e carregada. Enquanto a perdição decorre, uma pena que Camilo escanteie-se em questões que são menores.

Manoel de Oliveira é um reimaginador da arte, possivelmente um dos mais criativos possíveis. E Francisca é um auge dessa sua mistura fantástica entre o teatro, a literatura e o cinema. As palavras como motor. A encenação como meio. O cinema como eternizador. Esse não é um cinema que Oliveira conseguiria tornar verdadeiro quando jovem, aos seus vinte e poucos anos. O seu nascimento, nos meados da primeira década do século passado, é quase anacrônico ao cinema que conquistaria, o cinema falado. Mas não a fala enquanto artificio, como meio para a imagem exprimir a verdade. Em contrapartida, a fala enquanto fim estético, narrativo e dramático. E se Manoel de Oliveira usou do cinema para filmar o teatro, o teatro filmado, agora – antes e depois igualmente – recorreria também à literatura para mostrar-se um autor como nenhum outro, imortal.

Francisca – Portugal, 1981
Direção: Manoel de Oliveira
Roteiro: Manoel de Oliveira (baseado em romance de Agustina Bessa-Luís)
Elenco: Teresa Menezes, Diogo Dória, Mário Barroso, Francisco Brás, Nuno Carinhas
Duração: 166 min.

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