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Crítica | Framing Britney Spears: A Vida de Uma Estrela

por Leonardo Campos
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Como mensagem, Framing Britney Spears: A Vida de Uma Estrela é um documentário interessante para refletirmos termos da psicologia e do comportamento, constantemente popularizados na atual era das redes sociais e massificação ainda maior da opinião de não-especialistas. Masculinidade tóxica, responsabilidade afetiva, machismo sistêmico, etc. São múltiplos os termos e muitos deles podemos observar no desenvolvimento das denúncias realizadas nesta produção que deflagra a crise na trajetória da cantora Britney Spears, artista que se tornou refém de armadilhas estabelecidas ao longo de seu caminho por uma trilha perigosa na agressiva cultura da mídia, mecanismo da nossa sociedade do espetáculo, ressonância mais maligna e destrutiva das ideias que hoje, podemos considerar ingênuas, face ao que Guy Debord considerou lá em meados do século XX. Atualmente, a coisa é muito mais tensa e nociva.

Sob a direção de Samantha Stark, o documentário teve como direcionamento, o projeto de roteiro concebido por Liz Day, material que fornece conteúdo reflexivo para as engrenagens desta crítica contundente ao processo judicial que mantém Britney Spears como uma mulher praticamente prisioneira, alijada de seus direitos enquanto mulher, mãe e ser-humano que falhou no passado, mas ainda não recebeu a sua chance de redenção em plenitude. Sob curatela do pai, Jamie Spears, a artista não pode fazer movimentações financeiras, precisa ser aprovada em tudo que decide sobre entrevistas, aparições, shows, etc. Para quem possui um entendimento mínimo de Direito, sabe que na curatela, temos a presença de uma pessoa adulta, considerada incapaz de tomar decisões sobre a sua própria vida. O que surge como questionamento e ponto nevrálgico do filme é: Britney já não purgou o suficiente ao longo de mais de doze anos neste processo?

É daí que surge o movimento #freebritney, pomposo nas redes sociais e cada vez mais popularizado depois do documentário ter estreado não apenas em território estadunidense, mas também ter ganhado dimensão em plataformas de streaming exteriores, tal como nós, brasileiros, em contato com a produção através do Globoplay. Antes de adentrar na análise contextual, saliento alguns pontos estéticos para melhor expressar as motivações por detrás da avaliação. Primeiro, precisamos considerar que Framing Britney Spears é pouco interessante enquanto material cinematográfico. Os depoimentos são captados pela direção de fotografia de Emily Topper, sem nenhum elemento que solicite o nosso destaque, tendo como função captar as respostas para as entrevistas realizadas pelos envolvidos no projeto. A trilha sonora de John E. Low presta alguma colaboração, mas não se faz memorável. É, nalguns momentos, imperceptível para quem acompanha mais atentamente os depoimentos e edições de material de arquivo, devidamente justaposto ao conteúdo atual por Pierre Takal e Geoff O’Brien.

Diante do exposto, como produção cinematográfica, o documentário é desinteressante. Ou mais do mesmo. Isso, no entanto, não impede que a sua mensagem seja menos importante. Framing Britney Spears urge questões do contemporâneo. Deflagra falhas no sistema judicial, ética corrompida por interesses próprios no trabalho de determinados profissionais e revela como a cultura misógina é sistêmica, tão enraizada quanto o racismo estrutural e outras celeumas da vida em sociedade. Além disso, é uma narrativa que tem como ponto central, uma das palavras-chave do contemporâneo: a violência psicológica. Britney Spears sofreu numerosas pressões quando teve o seu colapso em 2007 e tudo isso foi detalhadamente coberto pela mídia que na época, lucrava com o seu sofrimento, sem propor intervenções ou apresentar alguma proposta colaborativa para ameninar algo que na ocasião, se tornou material para os memes que nos divertem nas postagens em redes sociais, construídos com base no sofrimento alheio que nós, em muitas situações, sequer imaginamos o doloroso ponto de partida.

Isso faz refletir que nós também somos, salvaguardas as devidas proporções, tão sádico quanto os emissores de conteúdo. Perseguida por paparazzi, ameaçada em sua integridade, criticada por cada grama do seu aumento de peso ou demais detalhes sobre a aparência, Britney Spears se tornou parte de um julgamento severo nas redes sociais, humilhada, detratada e transformada em piada para os diletantes diante do entretenimento televisivo. Assim, a degradação é assistida com pipoca, refrigerante e sorvete. E como consumidores acríticos desse tipo de material, precisamos realizar a mudança de postura. Na época, considero que até eu mesmo ri de tudo isso. Interessado no trabalho da cantora, vi na sua degradação a minha decepção. Foi também o período em que me aproximei do trabalho de Madonna, tendo como tese, reforçar como a mentora de Britney é singular no bojo da cultura pop. A tese é essa, ainda não foi derrubada e provavelmente não será, mas uma coisa não anula a outra. Madonna ser melhor que Britney Spears não significa que o ser humano por detrás do personagem mereça sofrer.

Tais questões me fizeram revisar, inclusive, o artigo “Mas, afinal, Britney Spears importa?”, publicado em 2017 e integrado no livro Êxodos – Travessias Críticas, lançado no ano seguinte. Olhado por um viés retrospectivo, percebi que até eu mesmo estava sendo indevidamente machista em minha reflexão. Britney perdeu o seu bom desempenho nos palcos? Sim. A sua voz nunca foi interessante e até mesmo as baladas românticas eram dubladas? Sim. Os últimos álbuns foram produções desastrosas se comparadas aos seus cinco primeiros trabalhos? Sim, sem dúvida. São afirmações que, no entanto, não me dão o direito de desferir golpes na artista que representa um ser-humano acuado, transformado numa criatura impotente diante de tantas armadilhas, incertezas e pressões que destroem a autoestima e confiança de qualquer pessoa. Percebi que na minha escrita, estava numa postura autobiográfica, tal como Oscar Wilde descreveu muito bem ao falar sobre o conceito de crítica, texto que no final das contas, acaba sendo, de certa maneira, uma descrição de nós mesmos.

Assim, revisada a postura, adentrei pelos caminhos reflexivos de Framing Britney Spears e tudo me pareceu uma viagem no tempo. A audição dos álbuns a cada lançamento, os primeiros passos para a crise em 2006, o desastre em 2007, a cobertura intensa da mídia em 2008, o retorno forçado em 2009 e a saga ao longo dos anos 2010. Ao emergir numa época tensa no que concerne os debates sobre sexo nos Estados Unidos, haja vista o escândalo entre o então presidente Bill Clinton e a sua secretária Monica Lewinsky, Britney foi desde o começo, pressionada por sua imagem artística ambivalente. Um esquema invasivo logo minou a sua existência e cada passo da jovem foi acompanhado com postura crítica e olhares tortos de invejosos e rancorosos. Era a fama e a crueldade da nossa cultura da mídia em exercício. A ascensão meteórica foi acompanhada de uma derrocada vertiginosa alguns anos após o sucesso, transformando Britney em motivo de piada e diversão, como já mencionado. Sua mãe alega que ela sofreu depressão pós-parto. Jamie, o pai, é considerado pouco presente no passado e com problemas de alcoolismo. Os fotógrafos de tabloides lucravam até um milhão por um clique intimo da cantora, como o flagra sem calcinha ou o ataque ao paparazzi num posto de gasolina.

Teria sido assim se fosse com Justin Timberlake, também tóxico ao indicar que a cantora foi infiel após o término do namoro? O que dizer da insensível entrevista concedida aos produtores da NBC por intermédio do sádico Matt Lauer, questionador dos atributos maternais da cantora? Diane Saywer, da ABC, entrevistou Britney e revelou uma declaração da então primeira-dama do governador de Maryland, em 2003, conteúdo cheio de ódio que falava sobre o interesse da mulher em disparar um tiro na cantora, por considera-la um péssimo exemplo para seus filhos. O casamento meteórico com o dançarino Kevin Federline também trouxe saldos nada positivos para a artista que ainda enfrentou outros problemas transformados em gatilhos para adoecimento. Tudo isso se tornou potência para o movimento #freebritney, iniciado em 2019 após a gravação do podcast Britney’s Gram, um debate sobre como a artista supostamente enviava mensagens subliminares sobre seu aprisionamento por meio das postagens em sua rede social.

Pode parecer teoria da conspiração, mas a base do movimento é bastante lúcida. As mensagens, lidas com atenção, nos permitem tais interpretações. A artista, de fato, parece pedir socorro por meio de suas fotos, vídeos e demais conteúdos que nos indicam a sua aparente angústia. O cancelamento da sua residência em Las Vegas só reforçou a crise, haja vista Jamie Spears ter declarado que a cantora teria se negado a continuar com suas medicações, além de ter assumido a direção de um carro sem autorização. Com depoimentos de fãs que apontam a artista como inspiração para suas trajetórias pessoas em adolescências difíceis, Framing Britney Spears é um filme sobre liberdade, relacionamentos opressivos, controle do “outro”, interesses financeiros em detrimento da qualidade de vida alheia, a crueldade nossa de cada dia, em ações aparentemente bobas nos compartilhamentos e patrulhamento que fazemos constantemente ao julgar o próximo nas redes sociais, dentre outras questões importantes para reflexão. A novela ainda continua e novas audiências pretendem refletir a situação da artista. Aos interessados no movimento, cabe agora esperar para ver os resultados. Por enquanto, #freebritney, mas cautela, combinado?

Framing Britney Spears: A Vida de Uma Estrela (Framing Britney Spears, EUA – 2020)
Direção: Samantha Stark
Roteiro: Liz Day
Com: Felicia Cullota, Liz Day, Nancy Carson, Britney Spears, Hailey Hill, Wesley Morris, Dave Holmes, Adam Streisand, Joe Coscarelli
Duração: 74 min.

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