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Crítica | Fourteen (2019)

A inevitabilidade do tempo.

por Michel Gutwilen
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O que mostrar e o que não mostrar sempre foi uma questão pertinente nos diversos tipos de arte, da literatura ao teatro, tendo o Cinema igualmente incorporado esse antigo dilema. Sendo a montagem uma das grandes características particulares da nova arte do séc. XX, é através dela que muitos autores gravitam escolhas de narrativa, de modo que uma simples passagem de uma cena para a outra pode significar uma radical mudança temporal, implícita ou explícita, em uma escala que pode ir de segundos a anos. Pode parecer paradoxal que o Cinema, que existe primordialmente como imagem, confie seu potencial narrativo justamente em torno justamente daquilo que não se mostra, mas é em dialética com o que é visto que esse lado do imaginário e do oculto pode revelar algo. Neste sentido, Fourteen, de Dan Sallitt, é principalmente um filme sobre elipses e que gravita em torno escolha sobre quais intervalos da vida de uma pessoa mostrar e quais ocultar.

Tendo como ponto de partida a amizade de muitos anos entre Mara e Jo, duas jovens adultas de Nova York que trabalham na assistência social com crianças e transitam entre diversos parceiros amorosos, Fourteen abrange um recorte de uma fase da vida. Conforme a narrativa progride, vai sendo revelando o surgimento da condição de depressão em Jo. Porém, no filme, a depressão em si é menos um objeto de um grande estudo psicológico e de personagem daquele que sofre a doença, mas sim a observação da pessoa que convive com alguém com ela. Por esse motivo, o ponto de vista da narrativa é sempre de Mara, pois é através da observação externa, e não interna, que Dan Sallitt cria uma tragédia sobre os rumos da amizade dentro da vida.  

Portanto, é dentro deste contexto que Sallitt busca pensar as suas elipses como uma função narrativa. Com em Tempo, de M. Night Shyamalan (que veio a ser lançado 1 ano depois), elipsar uma história é, antes de tudo, uma força autônoma que representa a inevitabilidade do tempo. Trata-se de uma atitude que frustra o espectador ao diferenciar sua vivência de tempo, subjetiva, da passagem de tempo objetiva na vida dos personagens. Em Fourteen, a vida vai seguindo em frente, não importa quantas mudanças aquelas personagens sofram (empregos, namorados, problemas pessoais). São fases e ciclos que vão passando como num piscar de olhos. 

No início da narrativa, quando a trama ainda não está contaminada pela depressão de Jo, existe até uma certa leveza e graciosidade da maneira como as elipses funcionam. De cena em cena, Mara e Jo (principalmente) trocam de ficantes/namorados em suas buscas por um parceiro, de modo que a quase instantânea troca de homens (dentro da nossa visão subjetiva de tempo) funciona como uma observação cômica da efemeridade dos relacionamentos. Ao mesmo tempo, essas mesmas elipses facilitam a percepção de semelhanças comuns a todos esses parceiros, de modo a se tornarem menos indivíduos e mais tipos sendo buscados. Ironicamente, a fase da “busca pelo amor” no mundo real se parece mais com a vivência elipsada que se vê no filme do que uma passagem de tempo contínua. Quando se está na busca por encontrar alguém até chegar a uma estabilidade de um relacionamento, é como se os intervalos entre namoros e ficadas mal existissem, um tempo morto fadado ao esquecimento dentro da nossa memória.

Já em uma outra direção, as elipses existem principalmente dentro da observação da depressão de Jo a partir do olhar de Mara. Essa escolha narrativa acaba sendo usada com muita precisão para pensar no quão silenciosa pode ser a evolução dessa doença, visto que ao escolher não mostrar Jo de maneira contínua, as aparições da personagem em Fourteen funcionam como uma sequência de altos e baixos. Por exemplo, em uma cena, Mara encontra Jo completamente abatida na casa dos pais e já no próximo encontro, após uma longa elipse, vemos Mara visitá-la na casa de seu novo namorado, com ela estando aparentemente estável. O que o filme faz é lembrar como as aparências podem enganar diante da doença (“quem tem depressão também sorri”) e de que não existe uma certa noção de linearidade no seu desenvolvimento. Se a narrativa é econômica e pontual nos momentos que escolhe para mostrar, cabe a atriz que faz Jo, Norma Kuhling, evidenciar o peso do tempo a partir de sua corporalidade e expressividade, incorporando em sua feição as marcas que a depressão vai deixando, o que não é visto por meio de diálogos, mas por meio de sua própria existência no plano. 

Existe uma cena no meio de Fourteen que a princípio pode se camuflar no meio das demais, como banal, mas a atenção formal que Dan Sallitt concede a esse momento me gerou uma certa curiosidade e me fez ficar martelando várias vezes sua memória, até que ficou claro como ela é a grande síntese do longa. Nela, Mara e Jo estão andando pela rua e conversando, em um plano sequência, até que Jo entra em uma loja, saindo do plano, sem que Mara perceba e continue falando sozinha. Segundos depois, Jo sai da loja, retornando ao plano, com a amiga finalmente notando. É um momento rápido, mas notável. Ora, é esse exato procedimento que acontece por todo Fourteen: sair de cena e voltar, enquanto neste tempo a vida continua, sem te esperar, sem sequer sentir sua falta. Um pequeno acontecimento banal, mas de muito peso simbólico.

Por isso, quando a narrativa se encaminha para o seu fim e uma notícia devastadora chega por telefone para Mara, não é a notícia em si que choca, pois o filme já vinha prenunciando isso há tempos, mas sim a sua reação, ou melhor, ausência dela. Definitivamente, o espectador parece ser mais atingido pela tragédia do que a melhor amiga, que parece calma, distanciada e quase fria diante daquilo. Tal dissonância emocional é causada justamente pelas experiências vividas diferentemente entre personagem e espectador. De um lado, nós, espectadores, 10 minutos antes da notícia, estávamos vendo as personagens juntas, enquanto companheiras fiéis de amizade. De um outro lado, uma vida inteira de distância entre elas, tudo aquilo que existiu no meio da elipse. Tempo subjetivo contra tempo objetivo. É neste exato momento em que Fourteen joga na nossa cara, com dureza, que a vida passa e não há o que fazer, que os rumos diferentes são parte do jogo.    

Um indicador relativamente forte da passagem do tempo existe com a entrada da filha de Mara na narrativa. Não pelo fato em si de seu nascimento, mas pelo dispositivo narrativo que ela se torna. No momento em que sua mãe conta para ela, na beira da cama, sobre uma velha história com Jo, não há como o contraste ficar maior. O que antes víamos na tela enquanto vivência, agora se torna uma história longínqua e nostálgica. Jo não é mais parte do agora na vida de Mara, mas parte do passado, de algo que se lembra enquanto memória. Logo, diante de nossos olhos, vemos o real se transformar em abstrato, em questões de minutos dentro do filme. 

No fim, quando Mara parece que vai permanecer distante até a última cena, mesmo no funeral, é a criança que faz com que suas emoções se externalizem. Ao conectar os pontos de que a moça da história de ninar era a mesma que estava ali, pálida em um caixão, isso faz com que a ficha caia Mara, que finalmente volta a lembrar do peso de Jo em sua vida. Contudo, o momento é rápido e ela logo se recompõe. Já é tarde demais, não há o que fazer, o tempo passou e é inevitável. Será que ela poderia ter feito algo por sua amiga? O filme não dá espaço para pensar, pois a vida segue, afinal.

Fourteen (Idem, 2019) — EUA
Direção: Dan Sallitt
Roteiro: Dan Sallitt
Elenco: Tallie Medel, Norma Kuhling, Evan Davis, Willy McGee, Scott Friend, C. Mason Wells, Caroline Luft, Ben Sloane, Kolyn Brown, Dylan McCormick, Lorelei Romani
Duração: 94 minutos

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