- Há spoilers. Leiam, aqui, as críticas dos demais episódios.
Crossing the Line tem um final que me deixou com um sorriso no rosto: Dev recrutando Ed para roubar Cachinhos Dourados para Marte, de forma a estabelecer o planeta não como um mero entreposto subalterno à Terra, mas sim como uma colônia propriamente dita. É um final de fazer qualquer um salivar, especialmente se encararmos For All Mankind, como eu encaro, como um prelúdio extraoficial de The Expanse, série que nos apresenta a um universo em que a Terra e Marte são inimigos no Sistema Solar, com uma colônia mineradora oprimida no cinturão de asteroides entre Marte e Júpiter. No entanto, esse ótimo encerramento, que promete movimentar e muito os três episódios finais, cobrou um preço alto na temporada.
E esse preço foi a linha narrativa da greve dos trabalhadoras de Happy Valley. O primeiro aspecto negativo foi todo esse assunto ser comprimido no espaço de um único episódio, algo que decepciona considerando que a base para a greve foi lenta e devidamente construída ao longo de todos os capítulos anteriores. Mas esse não é o grande problema, pois, realmente, não há tempo hábil para o desenvolvimento de algo assim na série considerando os demais assuntos que precisam ser trabalhados. O real problema foi o enfoque negativo dado aos grevistas e à instituição da greve como um todo. E olha que quem escreve a presente crítica é alguém que não abraça cegamente essa estratégia de negociação, ainda que também não seja burramente “contra” esse importante instrumento de tentativa de equalização entre classes.
Olhando, então, para o real problema, podemos subdividi-lo em dois. O primeiro é que a liderança do movimento saiu de Samantha Massey, que foi quem realmente o iniciou, e foi literalmente sequestrado por Ed Baldwin em seu projeto de “vingancinha” contra Dani. Uma coisa é Ed ajudar na greve, pois, considerando sua posição, ele tem um poder que Sam não teria tão rapidamente, outra bem diferente é ele tomar a frente de tudo, sentar à mesa de negociações ao lado de Sam e falar mais do que ela e basicamente dar seus pitacos a todo momento. Sim, sei muito bem que Ed é um dos – ou o mais – importante personagem da série, mas esse seria um ótimo momento para que For All Mankind abrisse um real espaço para um recém-chegado que efetivamente representasse a classe trabalhadora – pois, querendo ou não, nessa configuração, Ed é a elite ainda – e essa oportunidade foi perdida.
O segundo aspecto que é ainda mais problemático é que todo o enfoque dado pelo roteiro e direção faz dos grevistas os vilões. Não é que toda a greve tenha mérito e que não haja interesses escusos por trás, mas daí a pegar a única vez em que a greve é abordada na série para transformá-la em não mais do que um trampolim para os planos de Dev, são outros quinhentos. E notem que a mesma coisa poderia ser feita de outra maneira, sem precisar levar à explosão na fábrica de gás propulsor e sem que Dev precisasse fazer seu teatrinho que supostamente revela a “ganância” por trás dos grevistas somente para ele, então, separar aqueles que verdadeiramente dão o sangue pela causa e aqueles que somente querem dinheiro. Óbvio que o instituto da greve tem relação forte com dinheiro, mas ele vai muito além disso e, aqui, a produção chegou a um denominador comum injusto e um tanto revoltante que poderia ter ganhado mais camadas, bastando que Dev tentasse recrutar o grupo todo, durante seu showzinho, para seu plano secreto e muito instigante.
E olha que eu gostei muito das implicações laterais que a greve trouxe, como foi Dani enfrentando Ed abertamente na mesa de reuniões, com Krys Marshall novamente dando um show de atuação e a criação de uma equipe policial multinacional, por assim dizer, para estabelecer aquela atmosfera de medo e opressão que, porém, foi mal explorada. E não podemos esquecer daquilo que era óbvio, mas que precisávamos ser lembrados, ou seja, que Happy Valley nasceu “infiltrada” de agentes da CIA e KGB, dentre provavelmente outras organizações semelhantes dos outros países que a compõem. Tudo isso, se bem trabalhado, teria resultado em um excelente episódio que usaria o elemento da greve não como uma força “do mal”, mas sim como um movimento legítimo de mudança em Marte. Da forma como ficou, temos Ed como herói da greve e Dev como um visionário. Que se danem os trabalhadores!
Pelo menos a ação na Terra foi bem conduzida, com Margo sendo convocada por sua chefe a representar a Roscosmos perante a NASA na missão conjunta de captura e transporte de Cachinhos Dourados para a órbita terrestre. Toda a questão da imunidade diplomática, da completa falta de escolha de Margo em uma situação embaraçosa e, mais ainda, a reação de Aleida que, com sentimentos conflitantes entre seu amor pela mentora e figura de mãe e seu ódio pela traição e por Margo tê-la deixado achar que estava morta, faz o que pode para evitar o retorno à casa da filha pródiga. Aliás, falando em Aleida, quero só ver a reação dela quando ela se deparar com outra traição, desta vez a de Dev em seu plano de roubar o meteoro no que tem tudo para ser pelo menos uma dupla de episódios do gênero heist (ou roubo) que costuma ser muito bacana, especialmente nessa escala (fora o bônus de ver EUA e URSS de queixo caído se a operação for um sucesso).
Ah, como eu queria dar uma nota final bem alta a esse episódio… Mas a preguiça que enquadrou a greve dessa forma maniqueísta conseguiu perturbar até mesmo alguém que, como eu, encara o instituto com uma dose razoável de cinismo. Teria sido incrível se os showrunners tivessem conseguindo fundir todos os elementos ao redor e que decorrem da greve em um episódio que levasse exatamente ao mesmo resultado que tem potencial de alterar fundamentalmente a relação entre Terra e Marte, mas, infelizmente, eles preferiram seguir o caminho mais fácil de demonizar os trabalhadores que estavam apenas lutando por seus direitos. Não era necessário. E perdeu-se muito por isso.
For All Mankind – 4X07: Crossing the Line (EUA, 22 de dezembro de 2023)
Criação: Ronald D. Moore, Matt Wolpert, Ben Nedivi
Direção: Maja Vrvilo
Roteiro: Andrew Black
Elenco: Joel Kinnaman, Wrenn Schmidt, Krys Marshall, Cynthy Wu, Coral Peña, Toby Kebbell, Tyner Rushing, Daniel Stern, Edi Gathegi, Svetlana Efremova, Noah Harpster, Dimiter Marinov
Duração: 42 min.