- Há spoilers. Leiam, aqui, as críticas dos demais episódios.
For All Mankind nunca demorou tanto para engrenar. Já estamos no segundo episódio da quarta temporada e o que temos até agora são esboços estranhos do que pode – ou não – estar por vir e nenhum desses esboços, no momento, deixa entrever linhas narrativas realmente interessantes. Como disse ao final de Glasnost, porém, Ronald D. Moore e companhia ainda não conseguiram errar seriamente nesta fascinante série de História Alternativa, pelo que nos resta esperar que a temporada pegue no tranco antes que seja tarde demais.
E se por acaso parecer que meu primeiro parágrafo deveria ser o último, é que realmente eu o imaginei assim, mas resolvi mudar a linha da prosa, já trazendo a conclusão para o começo. A principal razão para isso é que, mesmo reconhecendo os problemas de Glasnost, que são reiterados em Have a Nice Sol, eu simplesmente acho For All Mankind uma delícia de série e uma das experiências de progressão temporal no audiovisual mais complexas e arriscadas que já vi, semelhante às mudanças de elenco de The Crown. Portanto, eu preferi começar pelo fim para evitar que minhas elucubrações passassem uma mensagem truncada aos meus leitores.
Deixe-me começar, para fins de exemplo do que estou querendo dizer, por toda a linha narrativa em Marte, com Miles Dale iniciando seu trabalho por lá e, ao longo do tempo, desiludindo-se completamente com a mudança na natureza de seu trabalho em razão dos problemas com a captura do meteorito, as péssimas condições de trabalho, com a corrosão de seu salário por gastos que ele basicamente é obrigado a fazer diariamente, quase que fazendo seu regime de trabalho e aqueles de seus pares que mora no subsolo de Happy Valley uma servidão por contrato, em que a pessoa basicamente trabalha para pagar o que deve no próprio trabalho e, depois de um tempo, ser finalmente “libertado”. Nós já vimos isso antes no audiovisual e na vida real e a repetição dessa história, aqui, parece uma daquelas escolhas cansadas, mas a grande verdade é que a série sempre prezou pelo realismo e não há nada mais real do que conflito de classes em uma estrutura hierarquizada. Se isso é comum na Terra de 2023, não deveria ser incomum em Marte de 2003 e é isso que o roteiro tenta mostrar, mesmo que para isso tenha que recorrer a contrastes para lá de óbvios que são explicados em seus mínimos detalhes por meio de diálogos expositivos e repetições constantes, incluindo uma divertida montagem paralela que contrasta Miles no lixo, em que vista do Planeta Vermelho é uma fotografia colada em uma parede e Dani no luxo, com vista ampla da superfície de Marte da janela de sua cabine privada.
Esse contraste é inegavelmente maniqueísta e, apesar de Dani perceber as diferenças a ponto de ordenar uma missão para consertar um satélite de comunicação quebrado que impede que os “subalternos” da base tenha acesso a vídeos particulares de suas famílias e a transmissões televisivas, a forma como a comandante de Happy Valley chega a essa conclusão não é fluida, não decorre do que vemos na tela. Muito ao contrário, sua tentativa de criar algum tipo de equilíbrio parece vir do nada, a partir de uma conversa com Ed que, para muito além da missão, tem como objetivo maior deixar bem claro o posicionamento do astronauta veterano sobre os trabalhadores da base, que ele considera basicamente mercenários que estão ali somente pelo dinheiro, enquanto que ele e seus pares estão ali pelo senso de aventura, descoberta e por dever ao país. É, sem dúvida alguma, um conflito de gerações muito interessante e pertinente que, espero, continue a ser esmiuçado ao longo da temporada, até porque tenho para mim que o caminho natural é o de uma espécie de greve espacial na base marciana que muito provavelmente revelará o pior de Ed.
Enquanto isso, na Terra, uma Aleida sofrente de estresse pós-traumático causado pelo atentado à NASA anos antes tenta retornar ao seu cargo, mas não consegue, o que a leva a esbarrar em Kelly que acabara de receber a notícia de que sua pesquisa atrás de vida em Marte será adiada indefinidamente em razão da concentração de esforços no meteorito que escapou às garras de Happy Valley. É muito estranho que as duas não tenham tido a oportunidade de se conhecerem antes, pois, como Kelly logo lembra, foi Aleida quem basicamente salvou sua vida, mas tudo bem, deixemos isso de lado para focar no encontro das duas na versão moderna – e mexicana – do Outpost, última relíquia de um passado de aventuras espaciais. O resultado da bebedeira é Aleida, uma máquina de trabalhar mesmo quando está desempregada, monta um plano de negócios para Kelly poder continuar suas pesquisas, mas, desta vez, na iniciativa privada, provavelmente com a ajuda de Dev Ayesa, fundador da Helios que fora defenestrado de sua empresa e que, conforme aprendemos no episódio, agora trabalha com robótica.
A procura de vida em Marte é, sem dúvida alguma, uma proposta muito interessante e que já havia sido alinhavada na temporada anterior. No entanto, assim como no caso do conflito de classes em Happy Valley, eu tenho dificuldades de ver para onde isso pode levar exatamente no curto espaço de tempo que as temporadas da série tem para desenvolver essas temáticas. Sim, é possível que Kelly descubra alguma forma de vida microscópica revolucionária para Marte e para a Terra – talvez até alguma coisa que imediatamente significa muitos cifrões para os investidores na exploração do Planeta Vermelho, mas eu fico receoso que seja algo etéreo demais para trazer consequências narrativas práticas para o que vem acontecendo na série.
De maneira muito semelhante, o quase epílogo com Margo acordando em pleno golpe de estado na União Soviética, com direito a criação de uma sensacional atmosfera de medo, isolamento e, ao final, violência, é algo tão macro que eu não vejo como a personagem se beneficiará disso e, portanto, como a série também se beneficiará disso para além de uma cisão de Happy Valley, algo já indicado pela agressividade e segredo dos norte-coreanos, o que significaria retornar à Guerra Fria, algo que, tenho para mim, deveria ficar no passado da série. Eu realmente espero que tudo não se resuma à personagem transformando-se em algum tipo de moeda de troca política, com intrigas quase que de espionagem em uma série que não me parece ter essa proposta.
Por mais negativos que meus comentários possam ter sido, eu, como disse inicialmente, sou fascinado por esse universo e acho que minha visão se deve muito mais à minha falta de visão sobre o que está por vir do que por qualquer outra coisa. Moore, Matt Wolpert e Ben Nedivi parecem estar preparando algo grande e esse começo mais lento do que o costumeiro pode ser, apenas, a calmaria antes da tempestade. Só nos resta aguardar!
For All Mankind – 4X02: Have a Nice Sol (EUA, 17 de novembro de 2022)
Criação: Ronald D. Moore, Matt Wolpert, Ben Nedivi
Direção: Lukas Ettlin
Roteiro: David Weddle, Bradley Thompson
Elenco: Joel Kinnaman, Wrenn Schmidt, Krys Marshall, Cynthy Wu, Coral Peña, Toby Kebbell, Tyner Rushing, Daniel Stern
Duração: 52 min.