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Crítica | Folhas de Outono (2023)

Kaurismäki filma dois solitários.

por Luiz Santiago
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Eu não sei o quanto isso é parte de nossa busca por padrões em (quase?) tudo, mas há um fenômeno cinematográfico muito curioso, que é o quanto manifestações da natureza, da flora ou fauna, ao serem filmadas por determinados diretores — e depois organizadas em uma montagem coerente com tal estilo — “mostram uma performance” típica das que esperamos nas obras desse referido cineasta. Aqui, os dias e as noites são filmados de forma estática, econômica, quase como se não quisessem existir, reforçando uma atmosfera meio paralisada, limpa e isolada, que marca o cinema do finlandês Aki Kaurismäki. Até o cachorro que aparece em cena é filmado de uma forma que parece ter visitado todas as aulas da “escola kaurismäkiana” de atuação, algo entre o estático, o teatral, o minimalista e o encantador.

O que os protagonistas de Folhas de Outono, Ansa (Alma Pöysti) e Holappa (Jussi Vatanen), têm em comum, é o fato de estarem sempre mudando de emprego, nessa fase de suas vidas, e serem pessoas muito solitárias. Tão solitárias que o trato social, a maneira como lidam (ou expressam) emoções e os caminhos que percorrem para terem uma vida melhor são sempre entrecortados por estranhezas comportamentais e dificuldade de manter algo sólido em seu cotidiano mecânico, especialmente no campo amoroso. Como o cinema de Kaurismäki é propício para explorar esse tipo de narrativa e personagens, podemos dizer que estamos num ambiente perfeito para florescer os estágios de isolamento e, como desafio a ser enfrentado, os primeiros passos para fora dos casulos pessoais e encontro com algo diferente. Tudo isso costurado com um humor ímpar, de uma tremenda secura; e por uma estética “belissimamente depressiva“.

Sob assinatura de Timo Salminen, um velho amigo de carreira do diretor (eles trabalham juntos desde 1981!), a saturação de cores dessa realidade “não engana” o espectador, porque há um plasma leitoso que a tudo cobre; fazendo, inclusive, com que o tempo presente (a trama se passa em nossos dias, e isso é firmado pelas notícias sobre a guerra Rússia-Ucrânia) incorpore ainda mais o desenho de produção à la “meados do século XX na Finlândia”, com direito a notícias obtidas pelo rádio, músicas de cantores de voz potente e distanciamento tecnológico. É muito interessante o fato de que essas cores fortes e cobertas por um “filtro cromático-etário” nos faça sentir tristeza e, ao mesmo tempo, um inexplicável aconchego, como se o mesmo espaço que trouxesse isolamento, fornecesse o antídoto para esse “problema”. Tal disposição estética pode ser vista nas casas dos dois protagonistas, mas a paleta e a organização dos interiores mudam, dando também boas noções da identidade de cada um, já que isso não vem por diálogos ou comentários-narrativos.

Folhas de Outono faz parte daquele seleto grupo de filmes onde “nada acontece“, mas “acontece de tudo“. Em toda a sua estrutura, é um filme bem simples, decupado num estilo peculiar e com uma abordagem dramática que não é exatamente do gosto de muitos espectadores. Há muito silêncio, uma câmera frontal que praticamente se revela como observadora dessa realidade, e um direcionamento muito claro por parte do roteiro: como duas pessoas sozinhas, que pouco se expressam, conseguirão suplantar suas dificuldades pessoais, seus vícios, seus dilemas sociais, e abrirão as portas para o amor, modificando seu status de desconexão? Dois dos caminhos utilizados pelo diretor para auxiliar nesse processo de ligação entre os indivíduos são a música e o cinema. O uso deste último vai desde um filme que o casal assiste (Os Mortos Não Morrem, que acaba gerando uma fala maravilhosa de Ansa, quando sai do cinema), até cartazes e citações a obras e cineastas que Kaurismäki admira e que fizeram parte de sua formação, como vemos nos pôsteres exibidos de Desencanto (1945), Continente Perdido (1951), Rocco e Seus Irmãos (1960), O Desprezo (1963), O Demônio das Onze Horas (1965), O Samurai (1967), O Dinheiro (1983) e também na menção cômica de dois espectadores saindo de uma sessão: Diário de um Pároco de Aldeia (1951) e Bando à Parte (1964).

Às vezes, a boa vontade, o desejo e as tentativas firmes de alguém para mudar de vida e alcançar aquilo que deseja não são o bastante. Em Folhas de Outono, é quase como se houvesse uma contrariedade do destino de Ansa e Holappa para que eles ficassem juntos. E a beleza do filme é justamente a superação dessa aparente apatia generalizada da vida e também das dificuldades inesperadas para se alcançar um pouco de amor e felicidade. Em meio às folhas mortas de outono, um casal e um cachorro começam a sua tardia primavera.

Folhas de Outono (Kuolleet lehdet) — Finlândia, Alemanha, 2023
Direção: Aki Kaurismäki
Roteiro: Aki Kaurismäki
Elenco: Alma Pöysti, Jussi Vatanen, Martti Suosalo, Alina Tomnikov, Janne Hyytiäinen, Sakari Kuosmanen, Sherwan Haji, Nuppu Koivu, Maria Heiskanen, Paula Oinonen, Simon Al-Bazoon, Eero Ritala, Matti Onnismaa, Lauri Untamo, Anna Karjalainen, Mikko Mykkänen
Duração: 81 min.

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