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Crítica | Fogo Interior: Um Réquiem para Katia e Maurice Krafft

Imagens roubadas, organizadas, eternizadas.

por Gabriel Zupiroli
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O que têm em comum O Homem Urso (2005), A Caverna dos Sonhos Esquecidos (2010) e Fogo Interior: Um Réquiem para Katia e Maurice Krafft (2022) além de serem documentários dirigidos por Werner Herzog? Há no mínimo duas dimensões que podemos tomar de empréstimo para ensaiar uma resposta a essa pergunta: primeiro, os três filmes olham, como é comum ao gênero, para outras vidas, para posições que ocupam um lugar relativo a um referencial subjetivo fílmico, o cineasta. Mais: eles lidam não apenas com outras vidas, mas também com seus trabalhos, seus produtos. As pinturas rupestres nas cavernas de Chauvet, a relação com os ursos de Timothy Tradwell, o trabalho com vulcões do casal Krafft. O cerne das três obras de Herzog está em jogar luz ao que é fabricado por mãos outras, independentemente de sua localização espaço-temporal, sempre procurando construir uma encenação que caminhe entre o plano da homenagem e o do roubo – do sentimento, do sentido, da relação.

Dessa forma, o que vemos em tela geralmente adquire uma tonalidade cênica que propõe uma duplicidade discursiva, no sentido de que não se trata apenas de um documentário “usual”, cuja direção fílmica é sempre proposta em certa unilateralidade, do observador ao observado, mas sobretudo os filmes propõem um embate quase “etnográfico” entre o proponente do olhar cinematográfico e o objeto que nunca deixa de perder sua (também) posição de produtor. Herzog cria um diálogo em função de transitar entre dois caminhos, cujo interesse reside sobretudo nas bordas, nos entremeios entre essas duas posições tão repelentes, porém tão complementares. Curiosamente, as três obras são fruto de um momento em que o debate vídeo/cinema está praticamente solidificado sobre conclusões parciais, o que facilmente permite localizá-las no campo epistemológico que Philippe Dubois propõe para o vídeo, onde o todo agora está contido na “espessura da imagem”.

Este espaço de categorização talvez seja o ponto de partida para tentarmos uma aproximação estética entre as três obras supracitadas. Trata-se, é claro, da chave de leitura mais evidente para o intento, sendo provavelmente a proposição mais básica para analisar os filmes. Numa segunda dimensão, a forma da análise pode passar a um ponto ligeiramente mais aprofundado: não apenas se trata de obras que propõem um olhar sobre ‘outridades’ e suas produções, mas também o que está em jogo é justamente uma disputa no campo da autoria das imagens. Isso porque um elemento básico que interliga os três filmes – e, sem dúvida, o que sempre interessou mais Herzog – é justamente o posicionamento central das imagens como dispositivos discursivos. Se por um lado temos os rabiscos nas paredes das cavernas, com sua carga simbólica que atravessa milhares de anos, por outro temos as filmagens intimistas de um homem entregue à natureza, ao “selvagem”, imagens que documentam, mas que, paradoxalmente, se propõem como formulações estéticas no sentido de que as filmagens de Tradwell sempre entregaram uma encenação direcionada. E, agora, num terceiro lado, possuímos algo ainda mais impressionante: as imagens de arquivo filmadas pelo casal Krafft ao longo de décadas, capturas que possuem um claro movimento linear-evolutivo de – de forma similar a Tradwell, mas com severas diferenças – transformar a singela captura documental em olhar estético e ideológico, emulando a perda de certa ingenuidade cinematográfica.

E é na articulação destes três elementos ensaiados como dispositivos cênicos que Herzog procura estabelecer o embate dialógico do objeto contra sua própria manipulação de tais imagens. “Isso aqui não significa ser mais uma extensa biografia”, diz o cineasta no início do filme, propondo, na contramão, unicamente a celebração da “maravilha de suas imagens”. É sobre essa ideia que se faz a obra: organizar os registros dos Krafft, dispô-los de maneira a ensaiar um projeto estético contínuo e com unidade, indicando uma ordem progressiva que até então, enquanto unicamente documentos, não existia. O que vemos, portanto, são suas imagens, suas gravações, suas capturas e suas propostas de olhares cênicos dispostos em rolos de filmagens que couberam a Herzog a organização.

Neste sentido, cabe-nos perguntas: onde se faz a posição de direção no filme? Como se dá o papel do artífice cinematográfico que propõe a encenação? Afinal, se “quase tudo o que vamos ver é filmagem feita por eles”, é suficiente para Herzog assumir unicamente a montagem e a narração para imprimir um trabalho “autoral” sobre a edição que assistimos? Bom, se pensarmos que cabe ao diretor alemão justamente essa proposição de organização estética, tais questões podem facilmente ser descartadas. Remontar e dispor tais materiais “crus” é justamente o cerne da encenação da obra, amarrada pela já tradicional narração afetada do cineasta – afetada num sentido duplo: por um lado, vemos sua entrega e admiração ao material trabalhado, por outro existe uma impressão de tonalidade neutra em sua voz que muitas vezes contrasta com as próprias palavras discursadas. Na verdade, mais do que se perguntar sobre uma suposta direção fílmica, caiba outra questão: a quem pertence tais imagens? De quem é sua “autoria”?

Se tomamos emprestado da literatura e da tradição borgeana a sentença de que a “crítica é uma forma de autobiografia”, e transferimos essa proposição para o campo do plágio, podemos ensaiar um pensamento de que a própria noção de “autoria” das imagens é algo desde o início já abalado. Por mais que foram registradas por Maurice e Katia Krafft – e Herzog nunca se cansa de deixar isso evidente -, tais imagens, ao serem dispostas e montadas por mãos outras, trazem à tona novamente a duplicidade supracitada: os documentários do diretor não apenas organizam e transmitem essas imagens para que elas sejam “apresentadas ao mundo”, mas sobretudo eles se apropriam delas e as roubam para condensar sua materialidade fílmica em uma nova disposição, em uma nova proposição que culmina, justamente, na organicidade da obra em função das duas autorias. Os fluxos piroclásticos, as nuvens quentes e o vermelho vivo transmitem, ao mesmo tempo, os Krafft e Herzog. Em dado momento do filme – quando o casal começa a se interessar menos pelos vulcões e mais pelas imagens desses vulcões e do que orbita ao redor deles -, o diretor/narrador afirma: “Já não são mais vulcanólogos, são artistas que nos carregam, espectadores, longe no reino da beleza estranha”. E é nesse ponto que reside o grande interesse do filme. Em perceber essa transformação do casal de meros jovens vulcanólogos que exploram a natureza a sólidos cineastas que apreendem a natureza sob o dispositivo da câmera, que propõem uma mise-en-scène interna àqueles quadros e que justamente por conta dessa paixão/obsessão perdem sua vida, são consumidos pelo tradicional motivo do artista que vai até o limite, que se entrega de corpo e alma para capturar e registrar seus objetos, até a morte.

É por isso, de certa forma, que se trata de um réquiem. Fogo Interior é como uma missa para os mortos que Herzog esculpe através de um gesto de roubo e apropriação, mas sobretudo de responsabilidade. Trata-se de dar vida a esse material que foi feito por mãos outras, de propor uma organização onde ele já não exista agora como meras imagens perdidas, deslocadas, mas sim como unidade fílmica, sólida, articulada em função de uma proposta que carrega a triplicidade de sua autoria. É muito mais do que uma homenagem: o que Herzog constrói aqui é praticamente um legado, um testamento daqueles que morreram em função dessas imagens. Nessa “espessura da imagem” reside o resto de suas vidas, agora transformado em memória, em registro ordenado que pode perdurar para sempre. Afinal, mesmo que sempre tenha trabalhado, de certa forma, com isso, é nos últimos anos que o cinema do alemão tenha se tornado de fato residual. É nessas instâncias teciduais distintas que o trabalho é feito, manipulado, esculpido. Se o cinema nasce com D. W. Griffith e termina com Kiarostami, como supostamente teria dito Godard, seus restos mortais estão espalhados pelos documentários de Herzog. Dispersos, trabalhados, organizados. Manipulados, vilipendiados, eternizados, em última instância.

Fogo Interior: Um Réquiem para Katia e Maurice Krafft (The Fire Within: Requiem for Katia and Maurice Krafft) – França, Reino Unido, Suíça, 2022
Direção: Werner Herzog
Roteiro: Werner Herzog
Elenco: Werner Herzog, Katia Krafft, Maurice Krafft, Harry Glicken
Duração: 84 min.

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