Com Flor do Equinócio, Yasujiro Ozu fez a transição para o filme colorido como se sempre tivesse filmado dessa maneira, demonstrando sua natural habilidade para lidar com mudanças, algo que é um tema muito caro para o cineasta, assim como a família. E são esses dois assuntos que mais uma vez estabelecem a infraestrutura dramática para mais essa obra que co-escreveu com Kôgo Noda, desta vez adaptando romance de Ton Satomi sobre o casamento arranjado, tradição profundamente arraigada no Japão e que encontra ecos até hoje em dia.
De toda a filmografia de Ozu, esta talvez seja a obra que mais diretamente encara a questão, colocando em lados opostos Wataru Hirayama (Shin Saburi), um rico homem de negócios de Tóquio e sua filha Setsuko (Ineko Arima), que deseja casar-se com Masahiko Taniguchi (Keiji Sada), jovem que namora secretamente. Bem no estilo do diretor, a temática até simples em sua gênese e que, claro, telegrafa seu final desde os primeiros minutos da projeção, ganha contornos contemplativos, com idas e vindas narrativas que paraleliza a trama principal com a de Mikami (Chishū Ryū – é impressionante como o ator, o que teve parceria mais longeva com Ozu, simplesmente não envelhece), antigo colega de escola de Hirayama cuja filha rebelou-se e saiu de casa justamente para perseguir sua felicidade amorosa de maneira independente. Mikami procura o aconselhamento de Hirayama sobre o tema e “coincidentemente”, então, Hirayama passa a viver o mesmo drama.
A usual calma com que o diretor lida com a questão e com a subtrama de Mikami talvez contribua para que o filme seja mais longo do que precisasse ser, por vezes beirando o cansativo, com diversas sequências em que os personagens fazem discursos diretamente para a câmera, criando um estranhamento que não é fácil de relevar. Esses enquadramentos de personagens em plano americano e câmera absolutamente parada, vale dizer, são marcas registradas de Ozu, mas, aqui, muito mais pela repetição de um assunto só com um roteiro que peca pelo didatismo, eles acabam contribuindo pouco para o desenvolvimento da trama que, como já disse, não carrega muita complexidade. Esse não é, porém, um problema sério que chegue a quebra a fluidez da obra, mas ele certamente leva a um esgotamento que vem cedo demais.
Ozu, porém, é um observador, um diretor com uma magnífica visão do mundano, do cotidiano e Flor do Equinócio é mais um ótimo exemplo disso em meio a um Japão do final dos anos 50 já em plenas mudanças comportamentais, com uma geração inteira de jovens do pós-guerra olhando para o futuro de maneira positiva e otimista e tentando quebrar com as regras milenares impostas por uma estrutura hierárquica patriarcal. A ocidentalização do país, algo que o cineasta sempre inseriu em suas narrativas e não como algo particularmente negativo ou problemático, fica evidente com as tomadas externas que revelam uma Tóquio crescente e eminentemente vertical e que contrasta com o lar de Hirayama e de sua família, ainda observando a arquitetura clássica oriental, com portas de tela translúcida, tatames e móveis baixos, além de figurinos baseados em quimonos nesses ambientes (a troca de roupas pelo patriarca acontece algumas vezes em cena). Mas, se a matriarca da família ainda seque o ritual clássico e tradicional, suas filhas são mostradas como jovens perfeitamente preparadas para o futuro cosmopolita da cidade, com cortes de cabelo curtos e figurinos bem recortados que podem muito bem ter sido inspirados no guarda-roupas de Jackie Kennedy.
O contraste do novo e do antigo, do progressista e do tradicionalista é colocado em destaque e, desta vez, com um olhar julgador de Ozu. Quer parecer que, para o diretor, o tempo de ficar agarrado a costumes medievais passou e que o momento é de olhar para a frente, mantendo a identidade do povo japonês, mas sem carregar vícios atrasados. Hirayama luta contra seu passado, luta contra a própria noção de seu casamento arranjado e demora a entender que as coisas estão mudando, que precisam mudar. Shin Saburi entrega uma performance digna de um acostumado a um modo de vida que precisa abrir mão dele ou de aspectos dele para seguir adiante. Por vezes ele pode parecer o grande “vilão” (ênfase nas aspas) da história, mas essa é uma interpretação maniqueísta de um ocidental do século XXI que não leva em consideração o tecido sócio-econômico de épocas diferentes. Hirayama é, muito ao contrário, um homem de transição entre o Japão do passado e o do futuro, como se ele estivesse passando a tocha para uma nova geração. É, de certa maneira, o exato equilíbrio, o ponto de virada que pode ser simbolizado exatamente pela flor do título, com o equinócio marcando o momento em que o dia e a noite têm a mesma duração.
Flor do Equinócio, portanto, pode cansar o espectador mais afoito – e de fato cansa -, mas ele carrega uma beleza plástica que ganha simbologia maior ainda justamente pelo uso da cor por Ozu, uma quebra de paradigma para o mestre que carrega seu trabalho para o futuro, mesmo de certa forma representando o passado. E o Japão colorido em tons ao mesmo tempo fortes e subjugados pelo pincel do cineasta é lindo.
Flor do Equinócio (Higanbana — Japão, 1958)
Direção: Yasujiro Ozu
Roteiro: Yasujiro Ozu, Kôgo Noda (baseado em romance de Ton Satomi)
Elenco: Ineko Arima, Fujiko Yamamoto, Yoshiko Kuga, Shin Saburi, Kinuyo Tanaka, Miyuki Kuwano, Chishū Ryū, Keiji Sada, Teiji Takahashi, Fumio Watanabe, Nobuo Nakamura, Ryūji Kita
Duração: 118 min.