Home QuadrinhosMinissérie Crítica | Fishflies

Crítica | Fishflies

Metamorfose e circularidade.

por Ritter Fan
1,2K views

O canadense Jeff Lemire é uma máquina de escrever e desenhar quadrinhos. Sua imaginação e sua produção é impressionante para padrões ocidentais, com mergulhos em gêneros variados, sejam dramas existenciais, horror, ficção científica e até mesmo quadrinhos de super-heróis, mainstream ou não, sempre com sua marca registrada, nos trabalhos autorais, de extrapolar eventos reais, alguns de sua própria experiência, transformando-os em verdadeiras sagas que contribuem sobremaneira para o contínuo florescimento e crescimento da arte sequencial independente, sem interferência editorial.

Fishflies, minissérie em sete edições com normalmente o triplo do número usual de páginas e publicada pela Image Comics em formato físico e digital entre 2023 e 2024, é um projeto cujo primeiro rascunho o autor usou para inaugurar sua página no Substack entre 2021 e 2022, quando a plataforma, como ele mesmo afirma no posfácio da primeira edição, estava oferecendo muito dinheiro para quadrinistas famosos fazerem parte da comunidade. E, como Lemire também deixa claro no mesmo texto, a versão oferecida no Substack evoluiu ao longo do tempo e o que hoje está lá é, por assim dizer, um rascunho sofisticado de Fishflies, com a versão definitiva saindo nos formatos tradicionais pela Image, sendo esta a que eu li para escrever a presente crítica.

A base inspiradora para a minissérie é a infestação anual de pequenos insetos conhecidos por fishflies, da ordem dos megalopteros, nas cidades à beira de lagos onde Lemire nasceu, em Essex County. Lá e também em outras regiões parecidas, milhões desses insetos mal cheirosos – daí sua correlação com “peixes” – aparecem nos vilarejos e cidades, tomando ruas, prédios e pessoas desavisadas por algumas semanas e morrendo logo depois. É em um desses verões tomados por insetos que a história se passa, com um menino sendo baleado por um assaltante em um mercadinho cercado pelos tais insetos, e ficando em coma induzido durante toda a história, com o assaltante, também estranhamente baleado (a estranheza vem de não vermos como isso aconteceu), fugindo e sendo acolhido pela pequena Francis “Franny” Fox, que vive em uma fazenda com o pai alcoólatra e violento.

Mas, como em A Metamorfose ou, mais recentemente, em filmes como A Mosca, o assaltante sofre uma transformação e se torna uma versão gigante dos insetos que tomam de assalto o vilarejo, algo que Franny, por ser sozinha, achar-se feia e ser alvo de bullying especialmente em razão de seu nariz constantemente correndo, empatiza e aceita imediatamente, criando um laço de amizade com a criatura que não fala, mas entende tudo, além de ser capaz de grandes saltos. Há uma bonita simbiose entre os dois e nem mesmo o fato de Franny saber que a versão humana de seu amigo inseto foi responsável pela hospitalização do menino a afasta dele. Paralelamente a isso, vemos a mobilização da força policial para localizar o atirador e o aumento de situações sobrenaturais – normalmente visões e marcas estranhas em determinados lugares ermos da região – que vão criando o contexto para a narrativa bizarra, mas muito interessante que Lemire conta ao longo de suas páginas.

Como é comum na obra do autor, sua pegada é de conto de fadas sombrio, com personagens normalmente abatidos pela vida que vivem. Franny, em seu isolamento e vivendo constantemente com medo do pai, é o maior exemplo disso e o leitor pode imediatamente relacionar-se com sua bondade e inocência que a faz socorrer-se da amizade de essencialmente um monstro, resultado na metamorfose de outro monstro, este humano. Outro aspecto caro a Lemire é a circularidade de suas narrativas, algo que, aqui, é abordado da literalidade na medida em que o mistério passa a ser compreendido e razoavelmente racionalizado como algo que marca a região há bem mais tempo do que podemos imaginar.

Confesso que é justamente quando Lemire tenta explicar o “misticismo” por trás do que vemos acontecer que ele se perde um pouco, criando uma narrativa que faz uso de um longo flashback na edição #6 (com arte de Shawn Kuruneru), mas que parece ser, apenas, um fragmento de história, algo que ou não deveria existir, com o mistério sendo mantido por completo, ou deveria ter ganhado mais conexões com o presente para estabelecer uma lógica fluida. Não é um problema sério, já que o principal da história está no presente e corre à revelia de investigações e revelações, com a bonita conexão e interdependência de Franny e a criatura que ela chama apenas de “Inseto”.

E, claro, há a maravilhosa arte de Lemire para alimentar os olhos. Com seus desenhos de corpos e feições humanas muito característicos, o autor faz uso generoso de páginas duplas e páginas inteiras para contar sua história com imagens belíssimas, de cair o queixo, todas elas com traços crus pintados apenas levemente com guache (ou o equivalente digital a guache, pois não sei se Lemire faz sua arte no estilo clássico, com lápis e pincel) nas cores azuis e verdes, com ocasionais e muito específicos vermelhos, seja no casaco de Franny, seja no sangue das feridas no jovem e no assaltante. Sempre gostei do estilo da arte do autor, mas, aqui, ele se excede e cria panorâmicas que realmente implora que o leitor pare de ler ou observe com toda a calma do mundo o que ele coloca nas páginas que são “cheias de vazio”, sem nenhuma tentativa de povoá-las com personagens ou informações demais. É quase como se ele transportasse seus leitores para o vilarejo onde a história se passa para que possamos desacelerar e pensar, mesmo diante de uma história de investigação criminal, monstros e de passados místicos.

E, com isso, eu chego à outra constatação: Jeff Lemire não só é um dos mais prolíficos e completos autores ocidentais de quadrinhos, como ele, apesar de sua produção absurda trafegando pelos mais diversos gêneros e assuntos, raramente erra e, na maioria das vezes, acerta na mosca. Fishflies é um desses acertos, uma obra que, mesmo com seus pequenos problemas de desenvolvimento na narrativa do passado, entrega uma história que é uma amálgama de gêneros, mas que pode ser resumida a uma carta de amor ao local em que ele viveu e aos vários socialmente desajustados que conhecemos, inclusive aqueles que estão lendo a presente crítica (e também o que a escreveu…).

Fishflies (EUA, 2023/2024)
Contendo: Fishflies #1 a 7
Roteiro: Jeff Lemire
Arte: Jeff Lemire (todas as edições), Beatrix Green (assistente de arte de fundo nas edições #4, 5 e 7), Shawn Kuruneru (flashbacks na edição #6)
Letras: Steve Wands
Editoria: Greg Lockard
Editora: Image Comics (original e parcialmente via Substack)
Datas originais de publicação (pela Image): 12 de julho, 11 de outubro e 15 de novembro de 2023; 10 de janeiro, 13 de março, 15 de maio e 17 de julho de 2024
Páginas: 448

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais