Aproximações pouco óbvias e de certa forma sentimentais para o western na era da ressignificação do cânone e dos novos revisionismos (2001 em diante) constantemente trazem pérolas que nos deixam impressionados em pelo menos uma importante medida. Filmes da última meia década tão diferentes e ao mesmo tempo com uma visão tão interessante para o gênero como O Regresso, Rastro de Maldade, Aferim! e até mesmo o não tão bem polido Os Irmãos Sisters mostram um refinamento no foco pessoal, às vezes sombrio e não raro mesclado a outros gêneros que o faroeste em nossa era pode trazer. First Cow (2019), mais um delicioso projeto da A24, é um integrante dessa lista.
John Magaro vive “Cookie” Figowitz, um cozinheiro que inicialmente encontramos viajando com um grupo de comerciantes de peles, no Território do Oregon. A diretora Kelly Reichardt cria aqui um exercício de “contemplação do cotidiano“, que pouco a pouco muda, mas não a ponto de tornar o filme intenso, o que não significa ausente de suspense. A cargo de Christopher Blauvelt, a fotografia dessa contemplação se constitui uma das coisas mais bonitas que tivemos no cinema este ano (2020), acentuando o poder do espaço geográfico sobre o homem, às vezes de maneira próxima ao terror — com as belas cenas noturas do começo da obra — e às vezes dando maior sentido ao peso histórico desse momento do roteiro, ambientado no início do século 19.
O texto de Jonathan Raymond, em parceria com a diretora, trata da tentativa de criar um bom empreendimento através de um imprevisível e belo laço de amizade entre dois homens. King-Lu, o imigrante chinês interpretado por Orion Lee, se junta a Cookie de uma forma nada usual, quase como um espírito, e se torna uma companhia essencial no estabelecimento daquilo que encontramos na maioria dos faroestes desde a Era dos primeiros colonos e vaqueiros: a busca por recomeçar ou melhorar a vida em novas terras. A rápida conexão entre os dois indivíduos é marcada por uma sensação muito importante, que raramente se vê em destaque nesse tipo de película, que é a culinária.
Isso faz de First Cow um filme sobre silenciosas conexões. Cookie retira da natureza aquilo que é necessário para o seu ofício e sobrevivência, conectando-se de modo lírico com ela. Já as outras pessoas se conectam com ele através da comida, e esse tipo de ligação se torna mais forte quando ele e King-Lu começam a vender biscoitos para a pequena vila criada em torno do Forte. A representação do espaço, os figurinos e a recriação feita pela direção de arte nos dá o que é visualmente necessário para acompanharmos o contraste agressivo entre qualquer outra relação que não conte com Cookie e King-Lu no meio ela. Eles são os diferentes. E quando a vaca aparece e passa a representar um papel na trama, percebemos isso de um modo ainda mais forte. As conversas de Cookie com o animal e o reconhecimento que posteriormente a vaca tem dele mostram o quanto o personagem tinha uma postura e um impacto, em seu meio, distinto de todos os outros.
O passado de dois indivíduos colocam-nos em uma trilha que os faz mudar a vida um do outro. Conectar-se num mundo de difícil contato é a chave para se entender First Cow, chamando a nossa atenção para as diferentes camadas ou intensidade de contato. Há uma grande tensão no desenvolvimento em meio a tanta beleza visual, e a obra termina com uma reticência, sem responder visualmente “como” os dois amigos morreram, embora possamos subtender isso pelo roteiro. Eu não gosto da introdução da fita, porque mesmo a sugestão narrativa de uma futura conexão entre indivíduo e meio (talvez até com um chamado à memória ou às surpresas do acaso), não vejo como ela se justifica orgânica e dramaticamente no filme, mas o que verdadeiramente importa aqui é a lenta e aplaudível contemplação para um recorte da vida de dois homens, sua busca por um sonho de vida, os mistérios de seu passado e o impacto que causaram no mundo em que viveram. Fuga, encontro, convivência e fim da linha. Um ciclo de beleza e representações da existência humana em um faroeste sensível e inesquecível.
First Cow (EUA, 2019)
Direção: Kelly Reichardt
Roteiro: Jonathan Raymond, Kelly Reichardt
Elenco: John Magaro, Alia Shawkat, Rene Auberjonois, Dylan Smith, Ryan Findley, Clayton Nemrow, Manuel Rodriguez, Orion Lee, Patrick D. Green, Ewen Bremner, Jared Kasowski, Jean-Luc Boucherot, Jeb Berrier, John Keating
Duração: 122 min.