Bem, você sabe como é quando você dorme com alguém desconhecido pela primeira vez. […] Você se torna uma tela branca, e então se apresenta a oportunidade de você projetar nessa tela branca quem você quer ser. Isso é interessante porque todo mundo faz isso. […] O que acontece é que enquanto você projeta quem você quer ser… uma lacuna se abre entre esse ser e aquele que você realmente é. E nessa lacuna aparece o que impede você ser quem você quer ser.
Glen
Segundo filme dirigido por Andrew Haigh, Final de Semana (2011) está bem longe de se enquadrar num estágio reducionista sobre relacionamentos entre homens, apresentando-se como um dos muitos reflexos de interações, vida e amores dos jovens adultos em nosso século. O longa acompanha a relação de sexo, conversas e drogas em um final de semana de Russell e Glen. De personalidades muito diferentes, os rapazes se conhecem por acaso, em um bar, e o tempo que passarão juntos consistirá o início de algo que o filme não se atreve a mostrar: o despertar para um novo momento na vida ambos. Russel é salva-vidas e romântico; Glen é artista e devasso. Na manhã seguinte ao se conhecerem, Glen pede para gravar um depoimento de Russel: “como foi a noite que passamos juntos?”. Essa gravação voltará em outro momento do filme, e em outro formato, como representação de uma memória sexual e sentimental de duas pessoas que não conseguem reter muita coisa em suas vidas por muito tempo, e por isso mesmo, precisam de um registro, uma memória externa a si mesmos, impessoal e fria, como um bote salva-vidas esperando o naufrágio de mais um relacionamento fracassado, uma traição ou o abandono de alguém.
O aplaudível roteiro de Andrew Haigh propõe e consegue erguer e problematizar uma história que aborda o sexo casual num contexto em que cabem a paixão, diversos questionamentos sobre a vida e várias formas de pensar o tema da existência em relação ao outro — ou o velho impasse do convívio. O que está sendo abordado transpõe a barreira do gênero e da orientação sexual, adentrando ao campo dos temas universais: é possível se apaixonar perdidamente em pouco tempo? Por que somos condicionados a seguir uma cartilha de “modelo correto de vida”? É possível ser feliz sozinho? Nossos amigos nos limitam? Que tipo de pessoa somos a cada vez que conhecemos alguém? A lista de perguntas não acaba, e penso que com elas o leitor tenha entendido a minha posição de que Final de Semana não é “apenas um filme gay”, mas um filme-flerte, de conteúdo e impacto fortes, legítimo e realista sobre a era do amor-rápido. E para elevar ainda mais esse tom de “amor líquido” baumaniano, o título é decisivo em relação ao conteúdo abordado, e em relação ao tempo da história.
Em uma certa linha de análise, lembrou-me o filme de Matheus Souza, Apenas o Fim (2009), onde uma garota resolve terminar com o namorado e fugir para um lugar desconhecido. A mesma urgência de acontecimentos da história de Tom e Adriana acontece com o final de semana de Russell e Glen, e é com a mesma perspicácia que vemos a edição Andrew Haigh tornar esse curto espaço de tempo em algo muitíssimo dinâmico, sem atropelar histórias ou deixar uma ponta solta no enredo. Tanto a construção do roteiro é perfeita em focar na personalidade dos enamorados e sua relação problemática, relutante e arisca com o mundo em torno, quanto a edição é inteligente em articular no tempo certo cada um dos espaços dramáticos que a história precisa atravessar, com boa cadência de ritmo e poucas dispersões narrativas.
A direção cuidadosa de Haigh, mantém evidente o tom de afastamento dos personagens, e paradoxalmente cria uma estreita proximidade com o espectador. Não vemos uma estrutura familiar se formar, como em De Repente, Califórnia (2007), nem temos um afastamento sentimental como no curta-metragem brasileiro Café com Leite (2007). Embora haja o sentimento surgido quase que milagrosamente de uma pseudo-relação sem estrutura nenhuma para isso, Fim de Semana não é um filme sentimental, e este é um outro grande mérito do diretor e roteirista. O foco está mais na falta, na solidão e no medo… do que no sentimento. É claro que temos duas visões diferentes sobre isso no filme, mas o tom geral atende mais ao vazio que à saturação. Esse tom de estiagem é sustentado pela planificação limpa do cineasta e pela sensível direção de arte, numa composição tão mesclada de ambientes, que as personalidades poderiam ser lidas apenas por eles, caso não houvesse um bom roteiro e direção como sustentação.
A fotografia da polonesa Urszula Pontikos caracteriza-se pelo amplo uso dos ambientes abertos e bem iluminados, uma excelente escolha que gira entre o absoluto do branco fosco e brilhante (encarnando a ausência ou a soma das coisas no próprio filme, do quarto às andanças pela cidade); e uso de lentes abertas, de modo deixar os personagens um pouco diminutos, quase perdidos no meio de ambientes urbanos tão grandes. A caracterização é finalizada pelo excelente trabalho dos atores Tom Cullen e Chris New, numa ótima relação em cena e admiráveis criações dramáticas. Tom Cullen é o destaque, dando vida e emoção ao romântico Russell. A sequência em que ele, mesmo bêbado e drogado, discute com Glen sobre a felicidade e o amor é um dos momentos mais incríveis do filme.
Final de Semana se firma bem na abordagem das relações homoafetivas e na rapidez funcional com que tratamos as pessoas. É como se o diretor chamasse a atenção para um mundo onde tudo é objeto de uso (sexual, comercial, fetichista, exibicionista) e propusesse uma pausa para olharmos uma possível janela que se abre. E como se não bastasse a inteligência do roteiro, percebemos que no meio desse complexo residencial escuro, no início de uma noite qualquer, uma janela aberta sob forte luz amarela denuncia a presença de vida e de esperança. Mesmo que o conto de fadas não aconteça, algum conto há de acontecer, e isso não está na indicação de um final feliz, mas na coragem de expor que um final de semana com alguém que se gosta pode ser o início de um ciclo, com portas abertas para qualquer possibilidade. Quem nunca depositou esperanças e fantasiou após um encontro casual, não vai entender. Mas fica a pergunta: existe alguém que nunca tenha feito isso?
Final de Semana (Weekend) – UK, 2011
Direção: Andrew Haigh
Roteiro: Andrew Haigh
Elenco: Tom Cullen, Chris New, Jonathan Race, Laura Freeman, Johnny Wright, Loretto Murray, Sarah Churm, Vauxhall Jermaine, Larry Joe Doherty, Kieran Hardcastle
Duração: 96 min.