Antes de falar sobre Filme Particular, uma breve contextualização de minha parte que acho interessante dizer: há uma grata recompensa em me deparar com um filme como este, logo após ter me debruçado no último mês estudando o tema dos desktop movies investigativos, o que culminou em um artigo sobre o uso do dispositivo, a partir da diretora francesa Chloé Galibert-Lâine, talvez a maior referência no formato atualmente, para a revista digital Multiplot!. Portanto, este texto sobre a obra de Janaína Nagata também possui um ponto de diálogo com o que já escrevi anteriormente sobre o formato, em que muito já falei lá sobre as características mais gerais sobre desktop movie, então cabe aqui fazer comentários mais específicos sobre o filme em si e menos sobre o dispositivo.
Para começar, uma breve curiosidade de um ponto de vista espectatorial. Vale dizer que eu nunca tinha assistido a um desktop movie em tela de Cinema, apenas no meu computador, o que criava uma condição de igualdade de tamanho entre o meio de assistir ao filme e a tela em que ele se passa. Em meu texto anterior, disse que na investigação pelo desktop movie, com suas múltiplas janelas postas lado a lado, os diretores costumam jogar com o direcionamento do olhar do espectador para múltiplos pontos focais em sua dimensão, usando do mouse como guia, mas também conscientes de que o espectador não consegue prestar atenção em tudo diante do split screens. Dentro da grandeza de uma tela de Cinema, e ainda mais estando na primeira fileira, é curioso como este movimento de guiar o olhar fica explicitamente visível presencialmente, quando percebo a minha cabeça e a das pessoas ao meu lado virando de um lado para o outro, quase que em sincronia, conforme o filme localiza seu foco entre o que está nas diferentes partes do plano.
A ideia do projeto de Janaína Nagata, por si só, já nasce de seu papel como espectadora. Ao comprar um rolo de filme na internet, a diretora descobre que nele havia contido uma gravação intitulada ‘filme particular’ e, a partir deste material de arquivo estranho e curioso, começa sua investigação. A opção por dedicar os primeiros vinte minutos a mostrar parte do material encontrado é uma escolha interessante porque coloca o seu espectador em um papel “quase” que de igualdade em relação a ela, fazendo com que ele passe pelo mesmo processo de desvendar aquelas imagens, deixando, em uma sequência “quase” livre de didáticos ou influencias externas, provocando indagações mentais na mente de cada pessoas.
No entanto, uso a palavra “quase” duas vezes porque a diretora, conforme avisa em uma mensagem antes de exibir tais imagens, usa uma trilha sonora de sua escolha. Ao optar por uma música que gera uma constante sensação de incômodo e estranheza, isso inevitavelmente molda a experiência de acompanhar tais imagens, já antecipando, antes de dar respostas, que há algo de errado no que se vê. Questiono-me o quão impositiva é esta escolha, no sentido de que ainda que o espectador não saiba qual o conteúdo daquele filme, a trilha “guia” suas sensações para um certo estado de mal-estar, como se Janaína não confiasse que o próprio ato de olhar as imagens, evidentemente capturadas de um ponto de vista de um olhar eurocêntrico diante do “exotismo” da cultura do Outro, já não pudesse ser o suficiente.
Por outro lado, dá para dizer que a escolha faria sentido por um outro ponto de vista porque Janaína trabalha principalmente a partir dos ruídos e choques entre a co-existência de diferentes elementos, seja no campo sonoro vs. campo imagético, como também da própria imagem que se choca contra a imagem pelo split screen. Como apresentei o texto citando como referencial para o desktop movie a Chloé Galibert-Lâine, vale destacar um ponto de desencontro entre as duas realizadoras: enquanto a francesa é mais interessada no processo de investigação nos espaços virtuais, a brasileira acaba tendo como força centrípeta as imagens de arquivo, sempre voltando a elas. Ela está mais na força por trás de sua própria textura e materialidade, com o processo sendo auxiliar para dar significados diante dela. Como sua busca não dá muitas respostas, ela tenta tirar a fórceps sensações daquelas imagens e seus pixels, reforçando planos e usando técnicas como o zoom ou também a diminuição da velocidade.
Tanto é que isso pode ser considerado tanto uma força e uma fraqueza de Filme Particular. Ao longo de seus mais de 90 minutos, Janaína retorna muito às imagens originais, reiterativamente e até com certa redundância, como se ela fosse tão apegada e fixada em seu objeto de pesquisa que tivesse dificuldade em abandoná-lo, gerando um constante retorno que atrapalha o próprio fluxo do filme e a sensação de que às vezes não há mais nada a ser extraído de nenhuma imagem, com o filme se implodindo em um looping. Por outro lado, os retornos às imagens não devem ser inteiramente descartados, uma vez que este movimento de vai-e-vem permite que toda vez que se retorne às mesmas imagens, após serem acrescidas de uma nova informação, elas se tornam diferentes, passíveis de novos significados e especulações.
Há, inclusive, um particular momento que é uma síntese de tudo foi dito aqui. Confrontando as imagens previamente apresentadas, Janaína encontra um vídeo no YouTube em que imagens da África do Sul sofrem uma colagem ao som de uma música agradável, feitas por alguém sob um sentimento de nostalgia do Apartheid. Depois desta sequência, a diretora deixa a música do vídeo antigo tocando enquanto volta para as imagens do material de arquivo, ressignificando-as e mostrando como a manipulação do som pode dar um tom completamente diferente para o seu conteúdo imagético.
Como típico de um desktop movie investigativo, em que a diretora compartilha seu processo de investigação pautado na curiosidade, há sempre envolvido o clima de conspiracionismo e da dispersão que envolvem toda busca. Afinal, a própria natureza da internet é convidada para essas características, em que seus usuários começam investigando algo e no meio do caminho se interessam por uma página anexa, abrindo outra aba e se enveredando por uma tangente e se desviando do objeto de interesse inicial, depois voltando a ele.
Navegar pela internet é como estar diante de um grande mapa mental digital, com diversas informações conectadas por uma única rede, inclusive com o risco de se perder neste labirinto informacional. Dentro desta perspectiva, Janaína parece utilizar conscientemente deste lado, fazendo questão de compartilhar os vários becos sem saída que chega, não dando apenas respostas em seu filme, mas principalmente deixando muitas dúvidas. Ao existir em um terreno obscuro, Filme Particular também acaba por jogar luz ao fato de que o Apartheid na África do Sul também possuí muitas áreas que não foram atingidas pela História oficial, precisando a diretora recorrer até a thread no Twitter.
No fim das contas, o que a narrativa faz é um estudo histórico a partir dos acontecimentos que rondam o Apartheid na África do Sul, só que só que ao invés de fazer isso didaticamente e linearmente, ele joga com as próprias imagens registradas sob o olhar do colonizador, que evidentemente carregam uma curiosidade do exotismo diante do “Outro”, para tensionar elas mesmas como imagens alienígenas, usando das próprias imagens para denunciá-las, ou seja, um filme forense.
Filme Particular (Idem, 2022) — Brasil
Direção: Janaína Nagata
Roteiro: Janaína Nagata, Clara Bastos
Elenco: –
Duração: 90 min