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Crítica | Ficção Americana (American Fiction)

Rindo, chorando e pensando.

por Kevin Rick
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Enquanto estava assistindo American Fiction, me lembrei de uma entrevista com Denzel Washington, em que uma jornalista questiona o ator/diretor sobre a razão de Um Limite Entre Nós precisar de um cineasta negro. O artista responde que a obra precisava de uma pessoa negra por trás das câmeras não por causa da raça, mas sim em razão da cultura. Essa diferença que Denzel explica me parece ser o centro das discussões e comentários sociais que o diretor/roteirista Cord Jefferson coloca em sua obra satírica que explora estereótipos sobre a cultura afro-americana e a exploração dela no contexto artístico estadunidense. Por mais que a produção seja baseada em um livro chamado Erasure, é curioso como o filme chega a se tornar uma espécie de diálogo interno metanarrativo e quase autobiográfico do roteirista simplesmente questionando determinados tópicos e aprendendo sobre seus próprios preconceitos durante a jornada do protagonista Thelonious “Monk” Ellison (Jeffrey Wright), um autor e professor universitário que simplesmente não aceita os clichês da literatura afro-americana.

De muitas formas, American Fiction faz críticas ao quebrar estereótipos e arquétipos. O ambiente da história está bem longe dos guetos de gângsteres, bairros marginalizados com rappers, crimes, escravidão e pobreza que estamos “acostumados” a ver com mais proeminência nos retratos hollywoodianos de pessoas negras. Na verdade, estamos diante de um protagonista intelectual e arrogante, uma família de cirurgiões e problemas mais típicos da classe média, envolvendo velhice, brigas entre irmãos, crises existenciais, isolamento, problemas de identidade e masculinidade, que também não se enveredam para o lado do melodrama exagerado e excessivamente disfuncional com o qual problemas familiares afro-americanos são representados nos EUA – nesse sentido, temos muitas cutucadas contra Tyler Perry, por exemplo. Até temos um simpaticíssimo policial negro que se casa com uma empregada negra (num filme criticamente pobre, como um Medida Provisória da vida, a funcionária seria branca, para evidenciar a ironia sem nenhuma complexidade ou sutileza).

Não quero dar muitos detalhes da trama, mas a partir desse cenário, a narrativa tem duas vertentes claras: uma comédia satírica e um denso drama familiar. De início, o filme se encaminha mais para o lado do humor, de uma tiração de sarro afiada sobre instituições americanas (em especial o universo editorial e literário) por meio de um protagonista condescendente, no meio de uma crise de consciência e absolutamente enraivecido à medida que uma piada artística se torna o centro das atenções de uma comunidade alienada e um público cheio de preconceitos em meio às suas próprias defesas sociais equivocadas – uma piada sobre uma estudante branca que não quer estudar um livro racista é absolutamente maravilhosa para abrir o filme. A questão é que a comédia aparece de maneira esparsa e às vezes ate soa intrusiva em relação ao destaque que Jefferson dá para o drama familiar.

Por uma questão subjetiva e de gosto pessoal, fiquei um pouco decepcionado pelo cineasta não focar mais na comédia satírica. Eu realmente penso que o filme atinge seus melhores momentos quando Monk está frustrado com produtores caricatos, participando de circos midiáticos sobre “diversidade” ou tendo discussões hilárias com seu editor sobre consumismo artístico, tudo ao acompanhamento de teclas de piano jocosas que adicionam um toque de ironia deliciosa de assistir. Inclusive, penso que muitos blocos são desperdiçados por conta disso, como sua disputa com a escritora Sintara Golden (Issa Rae, ótima, porém subutilizada), o núcleo sobre estudantes/professores universitários ou então seu papel como crítico de uma premiação literária, que certamente mereciam mais atenção narrativa.

Só que é difícil discutir com Cordy Jefferson quando o drama familiar também funciona incrivelmente bem. De diferentes formas, esse lado da história é satírico no jeito que apresenta dinâmicas familiares afro-americanas pouco retratadas no audiovisual e na forma que reforça de maneira crítica certos estereótipos e preconceitos da própria cultura afro-americana, como a sua perspectiva historicamente homofóbica (algo que outros artistas contemporâneos têm criticado, como Kendrick Lamar em Mr. Morale & the Big SteppersDonald Glover em Atlanta) e o ângulo elitista e equivocado de que minorias têm o “potencial” de serem melhores, algo muito bem discutido em uma cena da própria discriminação de Monk. Para além de comentários sociais e um derramamento de discussões temáticas, o drama familiar é bonito, sensível e cheio de empatia, progressivamente denso e íntimo através das lentes pacientes de Jefferson, que nos apresenta uma família complexa, falha e amável das melhores maneiras possíveis, o que faz a obra ser, de maneira geral, não só crítica, mas humana.

American Fiction é uma excelente comédia satírica e um ótimo drama familiar, entendendo muito bem como discutir raça e cultura, suas diferenças e a percepção em volta delas no contexto afro-americano. As duas vertentes da produção nem sempre se comunicam tão bem, mas Jefferson consegue trabalhar uma narrativa com intersecções entre comédia e drama que criam uma ótima produção. Com uma quantidade inesgotável de questionamentos, é notável que o cineasta se recusa a fazer algo que vemos muito hoje em dia: mastigar da maneira mais rasa e expositiva suas críticas; o que torna tudo ainda mais ironicamente reflexivo de discutir. Até em um desfecho metalinguístico atrapalhado, o filme termina sem nos dar respostas, o que é absolutamente fantástico.

Ficção Americana (American Fiction) – EUA, 2023
Direção: Cord Jefferson
Roteiro: Cord Jefferson (baseado no livro Erasure, de Percival Everett)
Elenco: Jeffrey Wright, Tracee Ellis Ross, John Ortiz, Erika Alexander, Leslie Uggams, Adam Brody, Issa Rae, Sterling K. Brown
Duração: 117 min.

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