Embora o público tenha voltado a ter um gostinho da direção de Michael Mann na série Tokyo Vice, de 2022, aquilo não foi o suficiente para suprir o hiato que o cineasta ficou sem lançar um grande projeto — seu último filme, Hacker, estreara em 2015. Ao longo desse período, porém, o diretor seguiu na tentativa de emplacar Ferrari, longa inspirado em um livro que ele sempre elogiou (Enzo Ferrari: O Homem, os Carros, as Corridas, a Máquina, de Brock Yates) e que também deveria sustentar a sua tese de que obras sobre automobilismo não deveriam focar apenas na dinâmica das corridas e nos carros, mas deveriam trabalhar um bom drama, com personagens fortes e marcantes para que o público se sentisse atraído pelo projeto. A bem da verdade, a luta para a criação deste filme vinha desde o ano 2000, e foi realmente uma longa batalha para que as filmagens se iniciassem, em agosto de 2022: houve troca de produtora, troca de protagonista (Christian Bale e Hugh Jackman chegaram a ser oficialmente escalados para interpretar Enzo Ferrari) e a sempre esperada luta por conta do orçamento, que dificultou bastante a realização do filme.
Tanto o roteirista Troy Kennedy Martin quanto o escritor Brock Yates já são falecidos (2009 e 2016, respectivamente), o que nos indica que o texto para Ferrari já estava pronto há um bom tempo e que, se houveram mudanças na versão final, elas não foram substanciais. De certo modo, isso traz um problema para a fita. Em essência, o filme é sobre um indivíduo. Muito bem interpretado por Adam Driver, Enzo Ferrari é mostrado desde o início como um homem de família, um homem duro de feições e atos; estrategista, e que pretende ir até o fim na luta por aquilo que quer. Enquanto foca nos aspectos pessoais e nas relações desse personagem com sua empresa e com as mulheres de sua vida (vividas por uma excelente Penélope Cruz e por uma deslocada Shailene Woodley), o longa flui com o mínimo de tropeços narrativos. Isso já não acontece quando a empresa é colocada no centro da narrativa. Como precisa criar cenas e sequências mais ou menos introdutórias para o público que não entenda nada de carros, de corridas ou da história do próprio Enzo Ferrari, os “blocos institucionais/didáticos” precisam acontecer, e é aí que temos alguns pontos fracos da obra, com pouco peso, conexão frágil com cenas anteriores e posteriores e até mesmo um tratamento visualmente mais pobre, se comparado às cenas familiares ou íntimas do enredo, sempre incrivelmente fotografadas.
O diretor de fato conseguiu mostrar que obras de conteúdo automobilístico precisam de bom elenco e de um bom drama pessoal e/ou familiar para ganhar maior “valor de mercado” frente aos espectadores, mas a relação entre essas duas partes nem sempre é harmônica aqui. Para nossa alegria, o elenco está muito azeitadíssimo, e exceto pela estranha escolha de alguns no nível de “sotaque italiano” (especialmente Shailene Woodley) e nos momentos em que esse “sotaque” aparece (algumas cenas me lembraram as entonações vergonhosas de Casa Gucci), o grupo está muito bem em cena, guiado pela inteligente e cuidadosa direção de Mann, que sabe como ninguém dar características sólidas aos personagens e ao ambiente sem precisar de muita coisa. Também gosto das cenas de direção das corridas, especialmente da Mille Miglia de 1957. Em relação ao terrível acidente que acontece com o piloto Alfonso de Portago (interpretado pelo brasileiro Gabriel Leone), muitos reclamaram do teor da cena, mas não vejo problema algum nisso. A constituição dela é que é ruim, devido ao péssimo uso de CGI, isso sim. Deveria ser uma cena marcante em todos os sentidos, mas os efeitos e a sua construção tiraram essa possibilidade, deixando apenas o choque e o horror diante da tragédia.
A despeito do silêncio midiático e das academias de premiação em relação a Ferrari, o filme não é de se jogar fora. Seus problemas internos são superados pela apresentação muito competente dos entraves particulares do biografado, pela entrega aplaudível da maior parte do elenco e pela tensão gerada nas cenas de corrida. Para os não iniciados na filmografia de Michael Mann, é também uma válida entrada a um cinema de ação intensa e investigação emocional e psicológica. Mesmo que funcione muito mais em seu aspecto dramático, Ferrari cria um entrelaçamento entre vida privada e vida pública que, dependendo da análise do espectador, pode servir como uma discussão interessante na esfera do “estudo de personagem“. Não é o melhor filme de Michael Mann, mas nem de longe é “uma vergonha“, como muita gente anda apregoando por aí.
Ferrari (EUA, Reino Unido, Itália, China, 2023)
Direção: Michael Mann
Roteiro: Troy Kennedy Martin, Brock Yates
Elenco: Adam Driver, Shailene Woodley, Giuseppe Festinese, Alessandro Cremona, Derek Hill, Leonardo Caimi, Penélope Cruz, Gabriel Leone, Michele Savoia, Jacopo Bruno, Domenico Fortunato, Damiano Neviani, Giuseppe Bonifati, Franca Abategiovanni, Marino Franchitti, Valentina Bellè, Luciano Miele, Daniela Piperno, Alessandro D’Elia, Gianfilippo Grasso, Andrea Bruschi, Giuseppe Attanasio, Andrea Dolente, Marco Maccieri, Andrea Fiorillo
Duração: 130 min.