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Crítica | Feliz Ano Velho, de Marcelo Rubens Paiva

Uma terapia literária.

por Ritter Fan
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Feliz Ano Velho marcou o mercado literário brasileiro nos anos 80 não só por manter-se no topo das obras mais vendidas por anos a fio, como também por de certa forma simbolicamente marcar, juntamente com algumas outras obras, o começo do fim da ditadura militar no Brasil. E, apesar de eu ter vivido ativamente a década em que o livro foi lançado, deixei passar a autobiografia de Marcelo Rubens Paiva completamente em branco, ao lado de outro marco do gênero autobiográfico de quatro anos antes, o alemão Eu, Christiane F., 13 Anos, Drogada, Prostituída…, ainda que, nesse segundo caso, eu tenha remediado a falta em algum momento nas últimas décadas. Mas a estreia de Paiva na literatura eu deixei mesmo para conferir só agora, depois de ler seu excelente Ainda Estou Aqui e nas vésperas do lançamento de sua terceira autobiografia, O Novo Agora.

A força motriz da narrativa é o acidente em que ele, aos 20 anos, em 14 de dezembro de 1979, mergulhando como o Tio Patinhas em um lago raso (conforme descrição dele mesmo), fraturou a quinta vértebra cervical, ficando tetraplégico. De maneira surpreendentemente informal e jocosa, Paiva parece colocar no papel uma louvável e fundamentalmente franca autoanálise que aborda tanto o primeiro ano de sua recuperação como com momentos anteriores de sua vida, com muitos amigos e namoradas, seu amor pela música, seus estudos tanto na escola quanto na faculdade, sua relação com a mãe e irmãs, e, claro, o sequestro e assassinato de seu pai Rubens Beyrodt Paiva pela ditadura militar, no começo de 1971. O autor faz de sua tragédia pessoal uma lição de vida, de vontade de se recuperar e de dar adeus ao passado e encarar seu futuro, algo que não vem sem momentos difíceis, sem dúvidas e pensamentos sombrios, claro, mas que ele trabalha com muito cuidado e com uma mistura quase cirúrgica de bom humor e seriedade que torna a leitura fácil e marcante apesar de uma temática que é inegavelmente dura.

E o que realmente faz sua autobiografia funcionar, o que a retira de um lugar-comum empolado e cheio de limitações que biografados normalmente se autoimpõem, isso quando não tentam dar mais relevância a si mesmos do que deveriam/merecem, é a forma tranquila, simpática e sob diversos aspectos despretensiosa com que Marcelo Rubens Paiva comanda as palavras nesse turbilhão de dor que ele destila. Ele escreve como ele fala – ou falava na época, claro – sem se preocupar demais em enquadrar sua narrativa em convenções rígidas ou de deixar de falar algumas coisas que poderiam desagradar alguns leitores aqui e ali que não querem sequer imaginar as dificuldades práticas e cotidianas de um tetraplégico. Com isso, gírias são constantes, assim como uma pegada totalmente informal e coloquial, do tipo “fala o que pensa” que muito provavelmente não seria possível nos dias atuais sem a aplicação de muitos e muitos filtros editoriais. É realmente como se um rapazote talentoso, mas completamente inexperiente na arte de escrever resolvesse traduzir seus sentimentos e suas lembranças em algumas palavras de um diário. Percebe-se facilmente a genuinidade do que se lê, assim como a autoconsciência de Paiva justamente sobre o que ele pensa sobre muita coisa, com diversos momentos leves, mas sinceros de mea culpa, ainda que seja visível as repetições temáticas, especialmente sobre seus amores, namoricos e transas.

Se Ainda Estou Aqui foi a obra do autor em homenagem ao seu pai e à sua mãe que, daquele seu jeito esperto, remete a Feliz Ano Velho quando ele arrisca falar de si mesmo, seu primeiro livro é incontestavelmente sobre si, com sua família ficando compreensivelmente em algum lugar ali no fundo de seus pensamentos, mesmo que haja um  bem aproveitado – mas breve – espaço para ele lamentar o ocorrido com seu pai, deixando entrever a raiva e a dor que sente. E, ao falar de si mesmo com um raro misto de jovialidade e maturidade, desembaraço e estrutura, alegria e tristeza e esperança e arrependimento, Paiva acabou falando por uma geração inteira – a chamada Geração Coca-Cola – que viveu em um Brasil sob o jugo militar e que, apesar de toda a lugubridade, de todas as sombras, conseguia ver a proverbial luz no final do túnel. Agora que eu corrigi minha falha de leitura de décadas, sinto-me pronto para o que parece ser o final de uma trilogia autobiográfica.

Feliz Ano Velho (Brasil, 1982)
Autoria: Marcelo Rubens Paiva
Editora original: Editora Brasiliense
Data original de publicação: 14 de dezembro de 1982
Páginas: 272

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