Obs: Há spoilers. Leia a crítica de todos os episódios da série, aqui.
Ok, agora Fear the Walking Dead está suficientemente adiantada em sua terceira temporada para que seja possível afirmar de forma mais categórica que Dave Erickson realmente acertou o passo da série. Seu maior triunfo é abordar a negritude da alma humana, não perdoando nem mesmo os protagonistas, sem medo de, no processo, afastar eventuais espectadores que ansiarem simpatizar com alguém.
Erickson não quer saber de sorrisos ou torcidas por esse ou aquele personagem. Ele joga todos no mesmo balaio de gatos, sem distinção. Se, no começo da temporada, Troy representava a figura vilanesca, sádica, egoísta e doentia em quase todos os sentidos, o que nos reconfortava ao automaticamente deixar claro que Madison e seu grupo eram os “bonzinhos”, a morte de Travis (já começo a ficar confiante que ele morreu mesmo…) mudou essa mecânica e alterou o posicionamento das peças, empurrando a família Clark na direção do abismo.
Madison, claro, é a matriarca e vem se provando uma destemida estrategista de bastidores manobrando direta e indiretamente a família Otto. É como ver um golpe de estado sendo vagarosamente construído, com Madison aos poucos tornando-se imprescindível a todos os habitantes do rancho disputado pelos nativos americanos locais. Aliás, ela manobra a ameça invisível (ma non troppo) representada por Wayne e sua tribo de forma a posicionar-se como a líder de fato, sussurrando “edipianamente” no ouvido de Troy e mostrando a Jeremiah exatamente o que ela é capaz de fazer.
Afinal, quando Jeremiah descobre o cavalo da família que deixara o rancho no dia anterior depois das aterrorizantes fogueiras noturnas de Wayne, a única pessoa com quem ele quer falar é Madison. Ele reconhece o valor da recém-chegada e vê nela seu verdadeiro substituto, mesmo que ele não queira ou hesite fortemente em transferir o poder de vez. E o que Maddy faz quando eles descobrem a família inteiramente zumbificada e, como os franceses, refestelando-se com carne mal passada de cavalo é algo que somente um líder nato poderia fazer. Revelar o verdadeiro assassino destruiria o rancho e, com ele, a única chance de um porto seguro para sua família. Com isso, não havia escolha: Wayne tinha que ser o culpado, em uma bem bolada maneira para criar o conflito centenário entre os donos ancestrais das terras americanas e os desbravadores vindo do Velho Continente. O receio que eu tinha de que essa narrativa seria suavizada começa a perder força, pois os roteiros desde a revelação da existência desse conflito não se esquivaram em mergulhar de cabeça nele.
Alguns podem estranhar a linha temporal que teria levado ao assassinato da família desertora, pois ela parece acontecer de uma hora para a outra, com um Troy magicamente ausente. Em um primeiro momento, confesso que me senti assim, um tanto perdido e incrédulo sobre como tudo poderia ter acontecido da forma como Jeremiah e Nick suspeitavam, mas a grande verdade é que a direção de Courtney Hunt (de Rio Congelado, longa ganhador do prêmio do grade júri do Festival de Sundance de 2008 e que lhe valeu a indicação de Melhor Roteiro no Oscar de 2009) é muito inteligente em nos manipular por intermédio de uma elipse temporal que usa a bebedeira de Jeremiah e sua ligação com Nick como uma cortina de fumaça para acontecimentos paralelos que não vemos.
Assim, ao mesmo tempo temos a confirmação do mais absoluto descontrole de Troy e de sua fácil manipulação por Madison que, ao “perdoá-lo” e inspirar o discurso aos seus soldados, ganha controle sobre o jovem desmiolado. O “sim, senhora” que ele solta ao final da conversa na cerca do rancho em que ele confessa os assassinatos não foi sem querer e uma relação de submissão começa efetivamente nesse ponto, tudo porque Madison acha que está fazendo o que é preciso para ter o local protegido.
Simultaneamente, vemos a confirmação de algo que já havia ficado nas entrelinhas: Alicia está com Jake não exatamente por gostar dele, mas sim porque ele pode ser útil nesse plano macro de Madison em tomar controle do local. Filha de peixe, peixinha é, afinal de contas. O que Alicia não contava é que sua frieza não é muito mais do que um verniz que ela usa para esconder o que realmente sente. Quando ela percebe o perigo no plano de Jake de entabular a paz com Wayne, ela não hesita em correr atrás dele, o que certamente gerará uma boa narrativa paralela que pode finalmente colocar a personagem em destaque.
O terceiro vértice dos Clark – Nick – é, mais uma vez, uma incógnita. Ele e o problemático Jeremiah têm uma atração, por ambos serem “produtos estragados”. Nick sempre foi um magneto para gente tão perturbada como ele e Jeremiah ainda tem a vantagem de ser uma figura paterna para o jovem. Apesar da relação hesitante no começo, agora, com Jeremiah revelando sua embriaguez para Nick, o laço entre os dois estabeleceu-se e esse laço pode ser o fiel da balança quando o inevitável confronto com Troy acontecer. Não há como sair coisa boa daí.
Red Dirt é desagradável, sujo, nojento até. Mas no bom sentido dramático. É o que Fear the Walking Dead deveria ter sido desde o começo: um estudo sobre a podridão da alma. Mas antes tarde do que nunca, não é mesmo?
Fear the Walking Dead – 3X06: Red Dirt (EUA, 02 de julho de 2017)
Criação: Robert Kirkman, Dave Erickson
Showrunner: Dave Erickson
Direção: Courtney Hunt
Roteiro: Wes Brown
Elenco: Kim Dickens, Cliff Curtis, Frank Dillane, Alycia Debnam-Carey, Colman Domingo, Danay García, Paul Calderón, Karen Bethzabe, Brenda Strong, Daniel Sharman, Sam Underwood, Dayton Callie, Lindsay Pulsipher, Rubén Blades, Jason Manuel Olazabal, Jesse Borrego, Lisandra Tena
Produtora: AMC
Disponibilização da série no Brasil (na data de publicação da presente crítica): Canal AMC
Duração: 44 min.