Um farol pode simbolizar a esperança, o ponto de luz que indica o caminho e avisa sobre perigos, mas ele pode ser encarado, também, como um sinal de isolamento, de solidão e até mesmo, ironicamente, de desesperança. O primeiro longa-metragem de Matty Brown, uma coprodução do Líbano, Emirados Árabes Unidos e EUA, faz ótimo uso dessa simbologia antitética evocada pelo farol e a ilha desolada em que ele é localizado para entregar uma obra de forte cunho alegórico que usa elementos oníricos e surreais para contar uma história infelizmente muito real que acontece diariamente pelo mundo e que vai além do que vemos na superfície.
O roteiro que o californiano Brown escreveu ao lado da egípcia Hend Fakhroo e da jordaniana-palestina, Yassmina Karajah usa uma família – pai, mãe e dois filhos – de faroleiros isolada em uma ilha no meio do oceano para, inicialmente, construir uma história que parece trafegar pelas tribulações de sobrevivência ali sem muita comida ou água potável, com o último dia de permanência deles avizinhando-se, para logo em seguida engrenar em uma narrativa de mistério e que atmosfericamente parece filme de horror, misturando realidade e ficção de maneira muito eficiente, sempre pontuando a progressão com detalhes discretos sobre o passado deles, seja um porta retratos em que vemos que havia uma outra filha na família, seja a promessa de que amigos estão para chegar. São poucos diálogos, todos difíceis e dolorosos, que muito claramente carregam história por trás de cada palavra, de cada olhar e de cada ação.
A direção de Brown é particularmente cuidadosa ao lidar com os gêneros que podem ser encaixados na obra, levando o espectador a uma jornada que, em um primeiro momento, talvez pareça confusa, com uma cena inicial imediatamente chamativa em que vemos a pequena Jana (Riman Al Rafeea), uma mosca em seu rosto, olhando fixamente para a câmera, com um corte repentino que a leva a correr atrás de uma lona azul até que ela afunda na água. O poder da imagem nesse início estabelece de imediato que Farol da Ilusão não é exatamente o filme que parece ser e, na medida em que Nadine Labaki como a mãe Yasmine, Ziad Bakri como o pai Nabil e Zain Al Rafeea (marcando a primeira reunião de Labaki com o jovem ator desde Cafarnaum) como o filho mais velho Adam entram efetivamente na história, a tensão e o mistério ganham estrutura, passando a efetivamente impulsionar a história.
Aqueles que porventura desgostam de filmes alegóricos como Farol da Ilusão é podem não se sentir exatamente em casa, mas vale afirmar que os eventos “estranhos” que pontuam a narrativa, como o grande objeto amarelo que Jana escava ao lado de seu castelo de areia e o medo que a família tem da água e até a forma como a pífia quantidade de comida dividida entre eles é tratada com enorme naturalidade fazem pleno sentido e não contam uma história hermética ou mesmo complexa. Ao contrário até, o terço final do filme que, para mim, é seu ponto fraco, destina-se a justamente defenestrar toda e qualquer sutileza do longa de forma a esclarecer com detalhes que considero desnecessariamente expositivos tudo o que é mostrado antes. Fica aquela impressão que a equipe criativa ou subestimou o espectador ou recebeu ordens expressas dos engravatados responsáveis pela produção para não deixar nada enevoado ou incerto quando os créditos finalmente começam a rolar.
Em outras palavras, apesar de ótimas atuações, uma fotografia muito bonita que faz da desolação quase um personagem e que usa muita câmera próxima ao chão para estabelecer um ponto de vista específico importante para a lógica do final, o roteiro acaba se sabotando ao fazer da sutileza e da elegância que marcam os dois primeiros atos algo mais direto, evidente e redundante no terço final, já que um olhar cuidadoso e sereno para o longa permite que qualquer um chegue à conclusão que a história exige, sem a necessidade de entregar tudo de bandeja. Não é, porém, o tipo de sabotagem que destrói o longa, longe disso, mas sim, apenas, algo que retira a sofisticação narrativa e que mais parece um liga-pontos que já vem pronto para não dar muito trabalho. Mas a mensagem e a crítica permanecem intactas, deixando o espectador com a indigesta, mas necessária tarefa de absorver e digerir o que viu, escolhendo entre a esperança da luz solitária no meio do oceano ou o desespero da solidão e separação do mundo conhecido que o farol pode representar.
Farol da Ilusão (The Sand Castle – Líbano/Emirados Árabes Unidos/EUA, 2024)
Lançamento no Brasil: 24 de janeiro de 2025
Direção: Matty Brown
Roteiro: Matty Brown, Hend Fakhroo, Yassmina Karajah
Elenco: Nadine Labaki, Ziad Bakri, Riman Al Rafeea, Zain Al Rafeea
Duração: 98 min.