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Crítica | Faróis, de João da Cruz e Sousa

Pesadelos íntimos, lágrimas negras.

por Fernando JG
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João da Cruz e Sousa é um caso daqueles poetas que foram esquecidos pela tradição crítica da literatura brasileira. Dos seus contemporâneos, poucos foram aqueles que lhe legaram o papel de grande literato. Entre os críticos da época, seu prestígio era nulo e mesmo Machado de Assis nunca chegou a mencioná-lo publicamente. Filho de pais escravizados, Cruz e Sousa logo cedo foi adotado por família branca e abastada, fato que o permite mergulhar no mundo cultural em uma época em que pessoas iguais a ele não eram vistas como dignas. Poeta maldito e indigno por natureza, sua existência literária é um desmonte das teorias raciais em voga no século XIX, teses estas combatidas por meio de poesias do mais alto nível, como no poema em prosa O emparedado. Há pouco tem-se recuperado o valor de Cruz e Sousa, que, embora permaneça à sombra das escolhas dos estudiosos brasileiros, mostra-se como poeta-chave da evolução literária da cena nacional. Pós-romântico, decadente, moderno, surrealista. São muitas as facetas encontradas em sua obra, podendo até dizer que antecipa aspectos incorporados posteriormente no Modernismo brasileiro. 

Missal (prosa) e Broquéis (poesia) são os primeiros livros de estética marcadamente simbolista no Brasil, amplamente influenciados pelas Flores do Mal de Charles Baudelaire. O discurso simbolista, como é sugerido pelo nome, ampara-se num forte uso de símbolos e signos que desenham uma determinada mensagem que pode tanto fazer referência a um objeto externo, quanto fazer referência à própria linguagem, criando enigmas por vezes indecifráveis, onde a imagem fala mais alto que a razão. Como refere Anna Balakian: o Simbolismo é por excelência o discurso indireto da imagem. Movimento nascido na França, especificamente em Paris, tem em Baudelaire, Rimbaud e Valéry seus principais expoentes. 

O Simbolismo é, de certo modo, uma crítica aos movimentos anteriores, como Naturalismo, Realismo e Parnasianismo, que tinham na ciência e na razão seus principais pressupostos. O Simbolismo surge como valorização da subjetividade, do inconsciente, das imagens irracionais, da liberdade. A subjetividade regia contra o objetivismo, a interioridade contra a exterioridade, o indivíduo contra a sociedade, a espiritualidade contra o materialismo. É a arte pela arte que, tão incompreendida, serve como um mecanismo de crítica a uma sociedade cada vez mais marcada pelo curso da mercadoria e do capital. A arte pela arte é a sua desvinculação da lógica capitalista e a sua revolta, tornando impossível que tenha algum valor de mercado, senão valor artístico por si próprio. 

Faróis, de Cruz e Sousa, é uma de suas obras mais carregadas pelo tom da melancolia e do decadentismo. O título do livro dialoga com o poema de Charles Baudelaire Os Faróis. Aqui, a arte aparece como a representação de abismos, do horror, mas também como espaço de um reino desejável, espaço de fuga e de escapismo. Cruz recupera antigos preceitos românticos no estabelecimento da sua literatura e confere-lhe uma nova roupagem. Por isso muitos chamam a estética simbolista de “decadente”, isto é, herdeira de um romantismo envelhecido. A maldição, aspecto tão comum no movimento, é reinterpretada à luz das problemáticas nacionais: ser negro numa sociedade escravista e ser um artista negro numa sociedade que rejeitava artistas num geral. Seria natural que sua poesia simbolista se fechasse num hermetismo sombrio, como se uma nuvem de cor negra que encerra o dia, trazendo negatividade, recaísse sobre a sua poesia. Os temas expõem sua misantropia: a noite, a caveira, a amada gélida, pálida, figuras mortas e apodrecidas, o cadáver, o pranto, enfim, a morte. Em Inexorável, a voz lírica, tomada pelo avesso das coisas, faz o elogio à amada morta: 

Ó meu Amor, que já morreste, 

Ó meu Amor, que morta estás! 

Lá nessa cova a que desceste, 

Ó meu Amor, que já morreste, 

Ah! nunca mais florescerás?!

………………………………..

Na funda treva dessa cova, 

Na inexorável podridão 

Já te apagaste, Estrela nova, 

Na funda treva dessa cova 

Na negra Transfiguração! 

Esse sentido de uma espiritualidade que transforma todo o exterior em interioridade decadente torna-se cada vez mais pungente ao passar dos poemas. Os signos da morte estão por toda a parte e agem como um princípio temático de Faróis, o livro como um todo. Não seria um exagero afirmar que o tema da morte aparece como uma resolução poética a um meio social em ruínas, pós escravista, pós republicano e mesmo à condição do homem negro em sociedade. Espanta que a poesia de Cruz e Sousa seja carregada por uma imagética de cunho tão sombrio e negativo quanto os poemas mais ultrarromânticos de Álvares de Azevedo. A hipótese de que sua experiência social seja o motor de suas poesias pode explicar tamanha opressão poética. Mas, certamente, se a possibilidade de relacionar a sua poesia à sua experiência pessoal pode ser uma hipótese verídica, há de se tomar cuidado para não recair num biografismo raso. Em todo caso, Cruz e Sousa segue o programa e os paradigmas da escola simbolista e é dela um aluno. 

Há, de fato, toda uma coloração negra ao longo do livro, que parece materializar a máxima freudiana de Luto e Melancolia de que a “sombra recai sobre o ego”. A noite aparece como uma forma de transcendência às avessas. Uma plenitude negativa, em negativo. A noite encerra no enigmático, no desconhecido e por isso tão visada pela voz lírica. A noite também é o estado de sonho, o que o aproxima das estéticas surrealistas que nasceriam 20 anos depois da experiência simbolista. Em “Olhos do Sonho”, o mistério da noite dá vazão aos temores que perseguem o próprio indivíduo em imagens horrendas. Os olhos o perseguem como num pesadelo. Olhos satânicos, diabólicos que surgem no escuro da noite e que o atormentam. Olhos que julgam, que o encarceram e o apavoram. Esses pesadelos íntimos se convertem em dor e tormento. Que olhos são esses? Quem o observa?: 

Certa noite soturna, solitária,

Vi uns olhos estranhos que surgiam

Do fundo horror da terra funerária

Onde as visões sonâmbulas dormiam..

O poeta, em seu ato de subjetivação completa, refugia-se do mundo numa espécie de Torre de Marfim. Seu único guia nesta empreitada noturna é Satã, figura emblemática e atmosférica de toda a sua poesia. Há uma determinada formação negativa desse eu lírico de quem o sofrimento é elemento caro à sua interioridade. Nesse mundo de trevas e horror, o poeta busca pelo indefinido, pelo inalcançável, por uma idealização que – diferente dos românticos – não pode ser definida pela pureza de um ideal de mulher divina mas deságua sempre no satânico e no mal. É como se o poeta fosse atingido por um profundo mal estar social, pelo desencanto total de um mundo que só pode ser traduzido por imagens de ruínas, sombras e escuridão. A dor do poeta estetiza o mundo exterior e nele só vemos imagens do fim.

Em Faróis, há o que considero o mais belo poema da coletânea e uma das mais verdadeiras expressões do sentimento de tristeza da poesia brasileira. Tristeza do Infinito medita sobre a gênese do desamparo sentimental, elaborando, num profundo niilismo, uma tentativa de definir as sensações vazias que ocupam aquele imenso nada interior. O ócio e a tristeza, objetos de inspirações poéticas e de profundos tormentos pessoais, ganha, na minúcia da letra de Cruz e Sousa, imensa pungência pelo alargamento quase infinito da descrição sentimental, o que lembra vagamente Uma Hora e Mais Outra, de Drummond. Tristeza do Infinito age com manifesto poético da emoção negativa que predominava entre os poetas finisseculares (fin de siècle) diante da razão, da objetividade e do materialismo anti sentimental em vigência no final do XIX: 

Anda em mim, soturnamente,

Uma tristeza ociosa

Sem objetivo, latente,

Vaga, indecisa, medrosa.

…………………………….

Tristeza de não sei donde,

De não sei quando nem como…

Flor mortal, que dentro esconde

Sementes de um mago pomo

………………………………….

Tristeza sem causa forte,

Diversa de outras tristezas,

Nem da vida nem da morte

Gerada nas correntezas.

Antes de encerrar, é mister que seja comentado um dos principais aspectos da poesia simbolista: a musicalidade. Paul Verlaine já preconizava: de la musique avant toute chose (a música antes de tudo). A palavra, no Simbolismo, é empregada de acordo com seu valor sonoro e o tema musical é parte de muitos poemas de Cruz e Sousa, a exemplo de Violões que Choram, A Canção do Bêbado, Réquiem do Sol, Música da Morte e Canção Negra. Ritmo e linguagem caminham lado a lado, de modo a querer encantar o leitor por meio de efeito estético e rítmico. Assonância, aliteração, rimas emparelhadas fazem parte do espetáculo poético o qual propõe a escola simbolista. 

Obra seminal da Literatura Brasileira, Faróis é o exemplo prototípico das tendências penumbristas e crepusculares que desabrocharam no fim do século XIX. Situando-se do lado macabro da coisa, a voz lírica remete a um profundo lamento agônico de quem molha a pena com lágrimas. Atual, pois o sofrimento humano nunca deixa de ser parte inerente à nossa subjetividade, Faróis encerra em seus poemas os anseios mais primitivos do homem, como o amor e a liberdade, e por ser sempre universal em seus afetos, será para sempre atual enquanto existir. 

Faróis (Brasil, 1900)
Autor: João da Cruz e Sousa
Editora: Martin Claret
Páginas: 320

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